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Lições de um grande conversador

Homenageado na abertura do ‘É Tudo Verdade’, o documentarista Eduardo Coutinho ensinou em vida que o encontro é transformador, não a verdade

Coutinho no filme 'Sete visitas', de Douglas Duarte.
Coutinho no filme 'Sete visitas', de Douglas Duarte.

Quando um artista morre, a urgência é buscar entre seus discípulos os rastros vivos de sua obra. Com Eduardo Coutinho, um dos grandes realizadores do cinema brasileiro e o maior documentarista do país, esse esforço não foi necessário. Para seus colegas de profissão e críticos de sua obra, Coutinho fez escola mesmo enquanto viveu.

Em sua 20a edição, o festival É Tudo Verdade presta homenagem ao cineasta paulistano, radicado no Rio de Janeiro, que marcou nossa cinematografia com filmes como Cabra marcado pra morrer, Santo forte, Edifício Master, Jogo de cena e outros mais. A ode se dá pouco mais de um ano depois de sua morte, aos 80 anos, com um presente aos fãs: o longa-metragem Últimas conversas, rodado por Coutinho e terminado por amigos e membros fiéis de sua equipe, como o produtor João Moreira Salles, a montadora Jordana Berg e o fotógrafo Jacques Cheuiche. O filme, sem tema nem camisas de força, reúne testemunhos de adolescentes cariocas, que o diretor entrevistou “como se fosse um marciano ou um menino de quatro anos”. É dos seus filmes mais puros, documentário em grau zero.

Primeiros passos

O crítico Carlos Alberto Mattos resume o início da trajetória profissional de Coutinho:

"Estudou Direito, foi copidesque de revista, respondeu sobre Chaplin em programas de TV e fez seu primeiro curta como estudante do IDHEC de Paris. Ainda na França, dirigiu teatro infantil e seu primeiro documentário. De volta ao Brasil, envolveu-se com o CPC da UNE, Cinco Vezes Favela, roteiros de ficção como A Falecida, Garota de Ipanema e Dona Flor e seus Dois Maridos. Ao mesmo tempo, dirigia um episódio de ABC do Amor e os longas ficcionais O Homem que Comprou o Mundo e Faustão. Em seguida, "caiu na real" através do Globo Repórter, que iria prepará-lo para a aventura final do Cabra".

É justamente na pureza de um gênero tão jogado pra escanteio que reside o legado de Coutinho. Ele nunca procurou a verdade: seu interesse residia em seus personagens – no diálogo simples e achegado com eles – e na autofabulação. “Coutinho tinha um desejo imenso de chegar perto das pessoas de maneira simples e delicada. A partir de Santo forte, ele estabelece seu cinema de encontro”, analisa o crítico Carlos Alberto Mattos. É nessa fase que muitos realizadores atentaram para a arte da conversa, algo que sempre existiu, mas que atingiu níveis mais profundos sob a lente do diretor. “Ele recupera o interesse pela entrevista como fato documental. A partir dela, cria cenas dramáticas – pequenos melodramas que passeiam entre realidade e ficção”, continua.

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Há quem pense que essa aproximação entre entrevistador e entrevistado seja improvisada, fruto do talento de quem sabe escutar. Na verdade, esses encontros se davam após um processo cuidadoso de seleção. “Ele mandava os pesquisadores primeiro. Fazíamos uma entrevista, depois outra com câmera e então uma triagem com ele”, conta a socióloga Eliska Altmann, que participou da pesquisa de Edifício Master e agora se prepara para lançar um livro de textos críticos sobre sua obra. No entanto, ter um método não ameaçava em nada a cercania. “Coutinho me ensinou que personagens são sobretudo pessoas com angústias, segredos, pai, filho e emprego”, diz Jordana Berg, que montou todos os longas de Coutinho desde Santo forte.

A partir de Jogo de cena, em que atrizes interpretam histórias de vida de 23 mulheres comuns, num exercício de limites entre realidade e ficção, Coutinho passa a questionar a pureza do encontro, experimentando mais também na esteticamente. “Ele deixa claro que o que interessa é o relato e maneira como a história é contada”, explica Mattos. Não que o documentarista tivesse pouca intimidade com a forma. Prova inconteste disso é seu Cabra marcado pra morrer – filme sobre a morte de um camponês paraibano, interrompido pelo golpe militar de 1964 e retomado 17 anos depois, com a inclusão de sua esposa e do próprio Coutinho. Para muitos, esse é um dos melhores documentários já feitos no mundo e, não à toa, o preferido de nove entre dez de seus adoradores.

Coutinho se fez personagem e também despertou fetiches. Em Sete visitas, de Douglas Duarte, faz sua última aparição no cinema brasileiro, no papel de um entrevistador. No filme Eduardo Coutinho, 7 de Outubro, lançado recentemente em DVD pelo selo Sesc, o realizador Carlos Nader inverte os papeis e o coloca no papel de entrevistado, oferecendo aos curiosos um saboroso diálogo com o maior documentarista brasileiro, já octogenário. Sem dúvida, um documento de enorme valor, já que Coutinho responde à altura do que era: um ótimo conversador.

Filmes de/para coutinianos

  • Santiago: lançado em 2007, o documentário de João Moreira Salles sobre Santiago, um mordomo que trabalhou durante 30 anos para sua família, começou a ser feito em 1992 e foi retomado em 2005. No mesmo estilo e cadência de Coutinho, usa a entrevista como fato documental.
  • Um homem comum: vencedor do É Tudo Verdade em 2014, o filme de Carlos Nader foi bastante comentado à luz de Coutinho. Também é fruto de uma longa relação: Nader conviveu por 20 anos com seu protagonista, o caminhoneiro paranaense Nilson de Paula, e com sua família. Dessa aproximação, surgem grandes questões.
  • À queima-roupa: estreado no Festival do Rio do ano passado, o documentário da ex-assistente de direção de Coutinho, Theresa Jessouroun, recupera anos de crimes e abusos cometidos pela polícia carioca. Os depoimentos colhidos em entrevistas com vítimas e vitimários são de grande sensibilidade.

Breve literatura sobre/de Coutinho

Eduardo Coutinho, o homem que caiu na real, de Carlos Alberto Mattos
Eduardo Coutinho
, de Milton Ohata (ed. Cosac Naify)
O documentário de Eduardo Coutinho
, de Consuelo Lins (ed. Zahar)
Eduardo Coutinho
, de Eduardo Coutinho (ed. Azougue Editorial)
Rompendo barreiras – Ensaios de literatura brasileira e hispano-americana,
de Eduardo Coutinho (ed. 7Letras)

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