Sobre ratos e homens terceirizados
“Seu terceirizado”, ele disse para si mesmo ao espelho do box do banheiro donde não havia sequer mais sombra de Narciso
Quando certa manhã o trabalhador acordou de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto terceirizado, mais para roedor de si mesmo –um metafísico tísico decadentista! – do que para uma romântica barata da literatura.
Acordou em cama de faquir, diga-se, o que indicava também a volta da inflação alimentícia, no que o sujeito refletiu friamente: agora sou um servidor de dois patrões, como na comédia picaresca italiana, sirvo à dupla patronal e recebo salário como meio homem, eis a real da matemática financeira da modernidade trabalhista.
“Getúlio, Brizola, Lulaaa!”, ele gritou, em um pesadelo sebastianista recorrente. “Acorda, amor”, seu benzinho o confortou com um terno, e sem tesão algum, beijo na testa. Programa Tesão Zero, fome idem, longo casamento... A gente vai levando, a gente vai levando...
“Seu terceirizado”, ele disse para si mesmo ao espelho do box do banheiro donde não havia sequer mais sombra de Narciso. “Seu terceirizado”, ele ouviu da sua própria mulher, que não havia dito nada, mas sabe aquela hora fragilizada que a gente escuta coisas da parede? “Terceirizado”, gritou o vizinho. “Terceirizado”, mexeram com ele na sinuca da esquina. O trabalho dignifica o homem, ele puxou essa do volume morto do cocoruto. A gente vai levando essa joça, viver é roça, ele se encorajou apesar de tudo e gastou o Bilhete Único como se fosse um luxo. O direito de ir e vir do nada para lugar nenhum. “O trabalho precário danifica o homem”, ele pensou direito, na volta para casa, mirando a rede que balançava sozinha na varanda nada-gourmet seu corpo de outrora, carteira assinada, rubrica decente, fundo de garantia, essas regalias que foram para as cucuias. “Que merda”, ele disse já pedindo desculpas à filhinha que não tinha nada a ver com seu infortúnio. Não tinha nada a ver, vírgula, o pai mirava a filhinha sob vergonha da sua trajetória, paranoia é paranoia, nada explica um surto psíquico de um terceirizado.
Onde ele passava, ouvia a ofensa. “Terceirizado”. “Melhor ser chamado de corno ou brocha”, ele sorria, elipsezinha no mar de verdades absolutas. Ele ia se conformando. O mundo de hoje em dia, dane-se. O café-com-pão-bolacha-não do trem suburbano era Bach para sua cabeça doida. Tentava. A gente vai levando...
“Se brincar vou na passeata de domingo acorrentado e puxado pelos meus dois patrões para gritar contra a corrupção”, meditou nosso amigo. Se brincar, refletiu mais adiante, eu colo no teflon da revolta dos que me lascam e bato panelas contra mim mesmo. “Não tenho mais nada a meu favor, só me resta o eco da desgraça. Falou e disse. É meu amigo, não se preocupem, bebi com ele até agora, estou próximo, não terceirizo amizade.
Como escrevi essa crônica
Agora sim...
Hoje aplico o truque, digo, a técnica, do mestre Ray Bradbury no manual O zen e a arte da escrita. Óbvio que vocês notaram.
Funciona assim, jovens escribas. Na dúvida, pegue uma palavra e rasgue o verbo. A palavra é... rato, nada mais terceirizado nas cobaias da vida. Assim começou a ideia dessa crônica.
Uma palavra e vamos simbora.
Deu dó dos roedores que um homem levou para a CPI da Petrobrás no Congresso. Até porque não eram assim, digamos, uns autênticos ratos gabirus que habitam esgotos ou porões do país do futuro. Imagina se fossem aquelas ratazanas de meio metro do Recife Antigo, ainda do tempo dos holandeses! (1630-1654). Nada, rapaz, nada disso, minha linda. Estavam mais para o tipo hamster, ramster, bichinhos fofos –sim, também são usados como cobaias, melhor não falar sobre isso. Deixa quieto.
“Ah, é rato-coxinha”, desdenhou um colega de trabalho. “Compra um pra mim, mãe”, relatou uma prima de Juazeiro do Norte cujo rebento deseja um estimado roedorzinho daqueles. O menino, candidato a macho de um certo Sertão sensível, pirou de desejo quando William Bonner gastou diminutivos no “Jornal Nacional” de Quinta para descrever as singelas criaturinhas. Padrinho de batismo, prometi o presente para breve. Devo, não nego, ratifico.
Tudo bem, os supostos ratinhos não representaram assim uma metáfora roedora à altura dos comandantes daquela Casa legislativa e aos larápios da propinaria petrolífera. Pobre roedor diante dos tesoureiros de campanhas eleitorais, quanta injustiça simbólica. Metaforazinha chinfrim, né, mas que foi divertido, não há dúvidas. Todo mundo entendeu a piada. O taxista que me conduziu ao final da tarde de ontem não falava em outra coisa. Riu à beça. Aplicou umas voltas a mais na desconhecida geografia carioca da Tijuca enquanto gargalhava, adivinha com o quê?, com os ratos do Congresso. Hahahaha. Paguei dobrado, tão-somente para usufruir da metalinguagem da roubalheira e enriquecer essa narrativa. Tudo por uma boa história.
É o que interessa. O melhor: se brincar, os bichinhos devem ter sido comprados à nossa custa, com nota fiscal superfaturada. Por que não fraudar inclusive a simbologia da roubalheira?
Só há um homem incorruptível no mundo. O mendigo altivo da esquina da minha rua Miguel Lemos com a Leopoldo Miguez, Copacabana, na cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro. Um homem à prova da piedade alheia. Tente comprá-lo. Não conseguirás. Nem com a mais aguardada das aguardentes. Simplesmente não aceita. Ele escolhe. Ele sabe que a caridade atende mais a quem dá do que a quem recebe.
Xico Sá, jornalista e escritor, é autor de Big Jato (Ed. Companhia das Letras), entre outros dez livros. Na televisão, dá os seus pitacos nos programas Redação Sportv e Extra-Ordinários.
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