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A QUARTA PÁGINA
Tribuna
São da responsabilidade do editor e transmitem a visão do diário sobre assuntos atuais – tanto nacionais como internacionais

A Ucrânia não pode transformar-se em uma Síria

O caminho para alcançar qualquer acordo de paz e assim desbloquear a situação pode ser resumido em 14 palavras: Putin tem que retirar suas forças, e Kiev recuperar o controle da fronteira oriental

Timothy Garton Ash
NICOLÁS AZNÁREZ

“Nunca mais!”, gritaram os europeus depois da Primeira Guerra Mundial. E voltou a suceder. “Nunca mais!”, gritaram os europeus em 1945, e voltou a ocorrer. “Nunca mais”, gritaram os europeus depois da Bósnia, em 1995, e agora voltou a acontecer. Espero e duvido, em igual medida, que o acordo de cessar-fogo de Minsk, conseguido graças aos heroicos esforços de Angela Merkel, permita alcançar a paz. No entanto, mesmo no caso improvável de que assim seja, vejam o que já permitimos que acontecesse.

Outro país europeu destroçado pela força. Segundo cálculos da ONU, morreram pelo menos 5.400 pessoas, cerca de 13.000 ficaram feridas e 1,6 milhão teve de abandonar suas casas. A Rússia anexou oficialmente a Crimeia, que fazia parte de um Estado soberano vizinho. O acordo de cessar-fogo da semana passada, Minsk 2, estabelece que a Ucrânia só recuperará o pleno controle de sua fronteira leste com a Rússia no final do ano, e tão somente se realizar eleições nas regiões de Donetsk e Lugansk e lhes conceder um status especial constitucional. Também diz que o Governo de Kiev tem de continuar pagando as pensões e aposentadorias, os salários e os serviços dessas regiões. Imagine que você só tenha permissão para fechar a porta detrás da sua casa se ceder a sala de estar a uma pessoa que está com uma pistola apontando para a sua cabeça e, além disso, você tem de continuar pagando as contas dela.

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As pessoas razoáveis poderão divergir sobre a melhor forma de defender-se contra uma agressão tão descarada, mas, pelo menos, não devemos ter ilusões sobre o que está acontecendo diante de nossos narizes. Vladimir Putin está desafiando deliberadamente a União Europeia com uma diferente, antiga e pior maneira europeia de fazer política. A força impõe sua razão. O negro é branco. A guerra volta a mandar, e o direito se arrasta como pode até uma vala, como um refugiado ferido.

Tudo isso em um país cuja integridade territorial a Rússia, os Estados Unidos e a Grã-Bretanha – mas, claro, quem se importa com o que diz hoje a Grã-Bretanha? – juraram solenemente proteger, de acordo com o memorando de Budapeste, de 1994, em troca de que a Ucrânia, que acabara de se tornar independente, aceitasse entregar um dos maiores arsenais de armas nucleares do mundo. Cito: “A Federação Russa, o Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda do Norte e os Estados Unidos reafirmam seu compromisso... de respeitar a independência e a soberania das fronteiras atuais da Ucrânia”. Assinado por Boris Yeltsin, Bill Clinton e John Major. Imaginem a lição que essa quebra de promessa enviará a outras potências nucleares ou que pretendam sê-lo: o que quer que você faça, não acredite em uma palavra desse tipo de garantias e não renuncie às suas armas nucleares.

A lei da selva de Moscou contra a selva de leis de Bruxelas. Quem está ganhando? “A Rússia”, responde o conhecidorealista norte-americano John Mearsheimer. E que podemos fazer? “O Ocidente tem de tentar fazer com que a Ucrânia seja um Estado neutro que sirva de tampão entre a Rússia e a OTAN. Que seja como a Áustria durante a Guerra Fria. Para isso, o Ocidente teria de abandonar de forma explícita a ampliação da União Europeia e da OTAN.” Tá bom, obrigado, professor realista. Talvez o senhor queira se encarregar de fazer isso? Temos o lugar perfeito para que promova sua cúpula de realpolitik: Ialta, onde, em 1945, Franklin D. Roosevelt e Winston Churchill deram uma ambígua legitimidade à ocupação soviética do leste da Europa. Essa Ialta está agora na Crimeia anexada.

Há quem diga que o Ocidente deveria abandonar a ampliação da UE e da OTAN

Que direito temos de ordenar a países independentes e soberanos que sejam Estados-tampão neutros? Gary Kasparov, que conhece a Rússia um pouco melhor que Mearsheimer, tuitou recentemente: “Os ‘realistas’ parecem tão satisfeitos em condenar milhões de ucranianos a viver como prisioneiros em um território ocupado. Na Europa, em pleno século XXI”. Um dia desses falei com Kasparov sobre a Ucrânia. Ele me disse que tinha estado em Kiev para comemorar o 20.º aniversário do memorando de 1994; sua opinião sobre a tragédia é ousada e original, como sua forma de jogar xadrez. Insiste em que não se trata de um conflito entre a Ucrânia e a Rússia, mas entre duas Rússias, que equipara, com licença poética, com o Rus (principado) de Kiev e a Horda Dourada.

Embora as pesquisas que mostram a incrível popularidade atual de Putin na Rússia sejam dignas de crédito, não devemos cometer o erro de identificar o político com o país. Adolf Hitler também gozou de enorme popularidade durante um tempo, assim como Slobodan Milosevic. Os povos podem deixar-se levar por rumos desastrosos, sobretudo quando uma propaganda hábil sabe explorar os mitos e as feridas nacionais mais arraigados. Então, alguns anos depois, as pessoas despertam e começam a pagar o preço. Ser contra Putin não é ser contra a Rússia. É defender o futuro da Rússia no longo prazo e apoiar os cidadãos mais perseguidos, que representam a outra Rússia.

Putin está infringindo precisamente o princípio que sempre disse que deveria constituir a base das relações internacionais: soberania incondicional dos Estados. Mas que desfaçatez – dirão – que alguns países que invadiram o Iraque critiquem outros por violar a soberania de um Estado! Ao que respondo que estão com razão, que a invasão anglo-americana do Iraque foi errada, do ponto de vista legal, moral e estratégico, mas que isso não é desculpa para voltar a fazer o mesmo neste caso.

Na Síria, outros poderão observar, há alguns campos de extermínio que fazem com que a Ucrânia pareça quase um país pacífico, e a ONU fala em nada menos que 3,8 milhões de refugiados. O que o Ocidente está fazendo a respeito? É que a vida dos árabes vale menos que a dos europeus, as dos muçulmanos, menos que as dos cristãos? A cada 15 dias desperto pensando: “Não deveria escrever sobre a Síria?”. Mas, além de saber muito menos sobre o Oriente Médio do que sobre a Europa, o que aprendi com os especialistas não indica nenhuma forma clara de avançar. Dá a impressão de que há grupos demais no terreno, envolvidos no conflito, e que contam com o respaldo de potências estrangeiras demais (incluindo a Rússia, que apoia Bashar al Assad).

A radicalização que a brutalidade da guerra provoca transformou os vizinhos em inimigos

Aqui, por sua vez, apesar da complexidade da Ucrânia, existe um meio de desbloquear a situação, que pode ser resumido em 14 palavras: Putin tem que retirar suas forças, e Kiev recuperar o controle da fronteira oriental. De modo que, ao contrário da Síria, a chave está em que um ator político mude de comportamento. Claro que isso não deteria da noite para o dia os irados separatistas que lutam em nome da República Popular de Donetsk. No leste da Ucrânia, como na Bósnia e na Síria, a radicalização provocada pela brutalidade da guerra transformou os vizinhos em inimigos. Kiev teria de demonstrar um enorme senso político e muita imaginação para reconstruir um Estado verdadeiramente federal, no qual os que se identificam como russos possam voltar a sentir-se razoavelmente em casa. Mas o caminho para alcançar qualquer acordo de paz começa com essas 14 palavras.

Timothy Garton Ash é catedrático de Estudos Europeus na Universidade Oxford, onde atualmente dirige o projeto freespeechdebate.com, e pesquisador titular da Instituição Hoover na Universidade Stanford. Seu último livro é Os Fatos São Subversivos: Escritos Políticos de uma Década Sem Nome @fromTGA.

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