São Paulo quer se apropriar de si mesma
Por meio de festas, movimentos e ocupações, a sociedade se organiza e reivindica um pedaço do espaço público da maior cidade do país
Alguma coisa acontece no coração de São Paulo. Um movimento pulsa e não se trata das mesmas reivindicações de julho do ano passado. Hoje, a cidade marcha para disputar um pedaço do espaço público. E o faz por meio de festas, ocupações, abaixo-assinados e movimentos organizados. Ciclistas, baladeiros, esportistas, naturebas, playboys, hipsters, a classe média, baixa e alta, a comunidade na periferia, todos disputam, a sua maneira com seus objetivos, por um lugar no concreto.
Começa assim. A Batata precisa de você. E na sexta-feira você dá uma passada por lá, para integrar o movimento pela revitalização e ocupação cultural do Largo da Batata. Assiste a um show de rock enquanto toma uma cerveja nos botecos que dão uma cara popular aos prédios empresariais na Avenida Faria Lima. No sábado pela manhã, vai pedalando pelas ciclovias para um piquenique pela ocupação do Parque Augusta. Aproveita para dar uma passada na Praça Roosevelt. Depois, dá uma esticada até a festa Santo Forte que ocorre nas ruas do centro da cidade, ali perto do Pari Bar e da Biblioteca Municipal. Faz um after party na Biscate não sente frio, em um prédio desocupado no Vale do Anhangabaú, e dança até o amanhecer. No dia seguinte, corre no Minhocão para transpirar o fim de semana intenso e passa no Ibirapuera para participar da ‘Festa dos Direitos Humanos e contra o deputado Bolsonaro’, com diversos shows gratuitos.
Nos últimos anos, diversas festas itinerantes têm tido suas caixas de som ecoando pela cidade com algumas características em comum: Ocorrem em prédios abandonados da região central, têm entrada a preços baixos ou são gratuitas, algumas acontecem nas ruas, no contraste do colossal Teatro Municipal com a cracolândia no centro da cidade. São diversas, a Voodoohop, Venga Venga, Biscate não sente frio, Selvagem, Santo Forte, Javali e assim vai, noite adentro. São Paulo não é uma festa. Mas quando elas ocorrem, têm um certo tom político. Graças aos coletivos que organizam as baladas, foi realizado, no início do ano, o SP na Rua. Com apoio da Prefeitura, uma série de eventos de música, dança e arte foram realizados na cidade sob curadoria dos coletivos. Todos gratuitos.
“Uma coisa muito interessante sobre as festas de São Paulo é a maneira onde elas estão sendo feitas: em lagos, ruas, praças, espaços, prédios ociosos, áreas ignoradas pela população”, diz o diretor neozelandês Jezmo Clode, que vive no Brasil há cerca de um ano, no documentário ‘O que é nosso – Reclaiming the Jungle’. Na sua visão, esse movimento de festas que ocupam o centro e misturam moradores de rua com um público de classe média é capaz de trazer uma nova ordem à cidade. “Isso ajuda os paulistanos a repensar e a recuperar a cidade para eles”. São Paulo sufoca, mas as ruas representam um alívio para uma nova ordem de urbanoides.
A nova dinâmica tem feito São Paulo continuar a atrair turistas, embora esteja longe das praias que compõem a maioria dos cartões postais do pais. Só para o natal, são esperados 600.000 turistas, de acordo com a Secretaria Municipal do Turismo. Neste ano todo, a expectativa é que mais de 15 milhões de pessoas tenham vindo para São Paulo a turismo ou a trabalho. Há dez anos, em 2004, esse número não passava de oito milhões.
Com essa grande demanda por eventos culturais na noite paulistana, a Prefeitura anunciou, para o ano que vem, uma linha especial de ônibus que circulará de madrugada. São Paulo também tem disso: A cidade que nunca dorme não tem transporte público noite adentro.
Mas, nem tudo são flores em São Paulo. A briga pela rua deu espaço para que moradores de um bairro nobre se organizassem para reclamar do movimento que o Museu da Imagem do Som (Mis) gerou ao trazer uma exposição do Castelo Rá Tim Bum para a cidade. As filas em torno do museu causaram transtorno aos moradores. Em outra parte da cidade, motoristas e ciclistas disputam por um pedaço de asfalto. A briga ganhou nome e movimento: Bicicletada e Churrasco dos Imprestáveis, como foram chamados os ciclistas por um morador.
“A impressão que eu tenho é que existe realmente uma diferença no que está acontecendo em São Paulo nos últimos tempos”, diz o arquiteto e urbanista Abílio Guerra, sobre as novas formas de manifestação pelo uso do espaço público. “Em primeiro lugar, as ações são diretas e muito adversas do que a gente acompanhou nos anos anteriores”, explica. “As ações agora no Parque Augusta, no Largo da Batata, no Minhocão são no sentido de dizer ao Estado ‘deixa a gente fazer as coisas’”, diz. Não se espera mais que o Estado faça pela sociedade. Ela mesma se organiza e faz.
São Paulo é uma cidade no Brasil que tem um clima extremamente bom, mas as pessoas só frequentam os lugares fechados Thomas Haferlach, organizador da Voodoohop
Um exemplo é a ONG Minha Sampa. Criada no Rio de Janeiro e trazida para São Paulo no meio deste ano, a organização tem como objetivo “colocar o cidadão comum em contato com o poder público”, segundo explica um dos seus coordenadores, Guilherme Coelho. Para isso, uma causa é escolhida e diversas estratégias, entre elas pressionar os vereadores ou deputados de São Paulo com o envio de e-mails registrando a reivindicação, são adotadas. Para isso, usam a plataforma Panela de Pressão.
Pressionar o poder público é uma das estratégias que tem feito o paulistano conquistar terreno na cidade. Em 2011, o quase septuagenário Cine Belas Artes fechou suas portas fazendo com que a especulação imobiliária marcasse mais um ponto na cidade. O preço do aluguel subiu e o proprietário não conseguiu mais pagar. A população foi às ruas, fez abaixo-assinado, se manifestou contra. Em julho deste ano, o cinema situado no epicentro da efervescência paulistana, a esquina da Avenida Paulista com a Consolação, foi reinaugurado, graças ao investimento de um novo patrocinador.
Por essa e outras razões, o rolezinho da classe média é uma marcha que leva centenas para as ruas e não só a procura de festas. Um movimento reivindica que o Minhocão seja transformado em parque. Outro, pede que a Avenida Paulista seja fechada para a circulação de carros aos domingos. Um terceiro reivindica a criação do Parque Augusta.
Na periferia da cidade, a comunidade em torno da Represa Billings reivindica que o Parque dos Búfalos se transforme de fato em um parque e não seja entregue como um terreno para a construção de casas populares, o que mostra que o movimento está transcendendo as regiões mais nobres de São Paulo. “Essa rede articulada está se distribuindo por toda a cidade”, diz o arquiteto Abílio Guerra. Ele acha “excelente” a ideia de fechar a Paulista aos domingos para a circulação de veículos.
“São Paulo é uma cidade no Brasil que tem um clima extremamente bom, mas as pessoas só frequentam os lugares fechados”, disse o alemão Thomas Haferlach, organizador da Voodoohop, uma das festas pioneiras desse movimento se apropriar do centro da cidade. Mas isso, de certa forma, começa a mudar.
As dezenas de quilômetros de ciclovias que estão sendo entregues caminham com esse movimento de apropriação do asfalto. Uma consequência dessa política adotada pela Prefeitura de São Paulo é a popularidade de Fernando Haddad. Enquanto em julho deste ano, 47% desaprovava sua gestão, em setembro esse índice despencou para 28%. Nem sempre acerta, mas ganhou torcedores fiéis por ter brigado com o senso comum.
No momento em que São Paulo sofre com uma seca histórica, há uma enxurrada de gente sedenta por ocupar a cidade e torná-la menos árida.
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