“Estão servindo caviar, mas é amargo. Exílio é exílio”
Exilado, o ex-presidente não chegou a ser preso, mas passou anos vivendo fora do Brasil
Em seu apartamento, no bairro nobre de Higienópolis, Fernando Henrique Cardoso deu seu depoimento à Comissão Nacional da Verdade no final de novembro. No depoimento, que dura mais de uma hora, o ex-presidente explica que, embora não tenha sido preso e tampouco torturado durante a ditadura militar, ele, que era filho de um general, teve que fugir do Brasil para não ser preso, logo no primeiro ano do regime.
Na época do golpe, Cardoso era professor de sociologia na Faculdade de Ciências e Letras da USP. Descobriu que estava sendo perseguido e foi viver na casa de amigos, até chegar ao Chile, no dia 1º de maio de 1964, um mês depois do golpe. “Decretaram a minha prisão, com várias alegações, algumas ridículas”, contou. “Uma delas, de que eu tinha sido – e eu fui – tesoureiro do Centro de Estudos de Defesa do petróleo”, disse. “Meu pai era presidente desse centro aqui em São Paulo. Isso, na época, era subversão”.
Chegando ao Chile, o professor de 30 e poucos anos achava que ficaria pouco tempo por lá. “Fui para o Chile com a expectativa de voltar logo, mas não voltava”, conta. “O reitor [da USP] não renovou meu contrato”. Segundo Cardoso, viver no exílio era penoso, pois gerava, o tempo todo, a expectativa de voltar para a casa. E essa expectativa não era correspondida. “Eu dizia que estão servindo caviar, mas é amargo, porque exílio é exílio”, disse. “Você vive na maior parte do tempo imaginando o que está acontecendo no seu país e na expectativa da volta”.
No Chile e sem poder voltar para casa, Cardoso foi para Paris para lecionar, em outubro de 1967. No mesmo ano, sua prisão aqui no Brasil foi revogada. Presenciou o Maio de 68 na capital francesa e voltou ao Brasil em outubro daquele ano. “A Faculdade [de Ciências de Letras da USP] estava em plena efervescência [naquele momento]”, conta. “Eles tocavam a Internacional Comunista dia e noite”.
De volta ao Brasil, Cardoso retorna para a sala de aula, se tornando professor de Ciência Política na USP, mas em abril de 1969 foi aposentado compulsoriamente e perdeu seus direitos políticos baseado no Decreto-lei 477. Chamado de "AI-5 das universidades", o decreto previa a punição de professores, alunos e funcionários de universidades que eram culpados de subversão ao regime.
Passou a escrever para revistas alternativas da época, além de livros, em sua maioria teóricos. Em meados dos anos 70, recebeu uma intimação. Passou 24 horas em um interrogatório, mas não chegou a ser torturado. “Me ameaçaram torturar, mas não torturaram”, disse. “Eu não sei por que eles foram me pegar. No interrogatório, que não terminava, eles vinham com umas coisas de ‘líderes trotskistas uruguaios e argentinos’. Eu nunca tive nenhuma ligação com trotskismo nenhum”, contou.
Embora estivesse atravessando esse período sem o terror da tortura, Cardoso tinha medo. “Se tocavam a campainha da sua casa de noite, você ficava com medo”, disse. “Não adiantava se você tinha culpa ou não, eram tempos nebulosos”.
Mas reconhece que passou quase que ileso. “O que aconteceu comigo foi nada comparado com milhares de pessoas aqui”. Cardoso diz que creditavam ao seu pai o fato de ele ter sido um pouco mais poupado do terror do regime. Mas se defende. “As pessoas diziam que eu tinha as costas quentes porque meu pai era general. Meu pai tinha morrido. E era contra [o regime]”, contou. “Eu não tinha costas quentes, eu tinha coragem de falar”, conclui.
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