Os porquês de Iguala
Um relatório informa que a polícia foi responsável pelo desaparecimento de 512 pessoas até 1985 em Guerrero, onde 43 estudantes são procurados
O Governo mexicano é responsável pelo desaparecimento de pelo menos 512 pessoas entre 1969 e 1985 em Guerrero, o epicentro da crise social provocada pelo sumiço de 43 estudantes em Iguala (a 192 quilômetros ao sul da capital do México) em 26 de setembro. Essas 512 pessoas desaparecidas têm paradeiro desconhecido e não se tem conhecimento das ordens judiciais para suas detenções, de acordo com relatório elaborado pela Comissão da Verdade de Guerrero, ao qual o EL PAÍS teve acesso. O documento prova que durante 14 anos a extinta Direção Federal de Segurança (DFS) utilizou policiais e militares para realizar execuções extrajudiciais, abusos policiais, violações e inclusive voos da morte.
A conclusão do relatório revela os antecedentes de uma das maiores crises do país nos últimos anos: o massacre de Iguala. A investigação compila centenas de depoimentos e documentos que comprovam que a extinta DFS, que operava sob as ordens do Partido Revolucionário Institucional (PRI, que exerceu o poder hegemônico no país entre 1929 e 2000), deslocou 360 homens da polícia e da elite das Forças Armadas para a “localização, captura e extermínio” de grupos “subversivos” nos anos 1970, sem nenhum tipo de ordem judicial. A Comissão divulgou nome, sobrenome e foto de pelo menos 512 vítimas detidas em Guerrero. Com um orçamento ínfimo aprovado pelo Congresso estadual (que não foi cumprido nos últimos seis meses), uma equipe de acadêmicos independentes realizou um trabalho exaustivo que começou oficialmente em 2012 —mas cuja origem remonta a 2006— por pedido dos familiares das vítimas. Durante seu trabalho sofreram ataques de criminosos, o último em janeiro deste ano.
“As pessoas ainda têm muito medo de falar. De nenhuma forma o obtido representa 100% dos desaparecimentos forçados. Muitas pessoas ainda têm temor. Outros consideram que já aconteceu há muito tempo e preferem resignar-se”, afirma Nicomedes Fuentes, um dos membros da Comissão. “Tudo que aconteceu na guerra suja [durante os anos 1960 e 1970] está ligado com os acontecimentos de Ayotzinapa. O problema dos anos 1970 não foi resolvido. Nunca se buscou ressarcir o dano. Não há uma cultura democrática que traga paz. O pior delinquente tem direito a um julgamento. Não tem porquê desaparecer com eles. Tem que julgar e castigar de acordo com o Estado de direito do México”. A Comissão acompanhou em 2012 a exumação de dois cadáveres de pessoas executadas extrajudicialmente, mas ainda não foram devolvidas a suas famílias.
Gustavo Tarín, membro da polícia militar, afirma que os habitantes de Guerrero eram detidos e interrogados sob tortura para que “confessassem” delitos sem ordem judicial. Se não aceitassem, eram levados amarrados e vendados para uma cadeira que era chamada de banquinho dos acusados.Diziam a eles que seriam fotografados, conta Tarín. “Então matavam com um tiro na nuca. Sempre se usava a mesma pistola, que foi batizada de espada justiceira. Colocavam os mortos em bolsas, com umas pedras, e costuravam”. Os corpos eram lançados de aviões militares. Em uma noite podia ocorrer até três ou quatro voos. Tarín calcula que ao menos 1.500 pessoas morreram assim durante esse período. A Comissão conseguiu comprovar ao menos essas 512 mortes. Um dos militares que participou destas operações pediu asilo político no Canadá em 1988, horrorizado pelo que havia visto.
Margarito Monroy Candía, piloto de aviões, respalda a versão. Participou de 15 viagens. Seu depoimento: “Destaca que as pessoas que transportou eram de todos os lugares, também de boa situação econômica, engenheiros, doutores do povo, formados, de todo tipo. Quando eram mulheres, ofereciam que se fizessem sexo [com os militares], seriam soltas ao chegar a Guerrero e em alguns casos seriam devolvidas a seus esposos. Em algumas ocasiões aceitaram, mas nunca, que ele tenha visto, foram soltas”, afirma o relatório.
Monroy conta que todas as viagens que participou eram lideradas pelo general Mario Arturo Acosta Chaparro, denunciado em 2001 por 120 famílias pelo desaparecimento de seus entes queridos e formalmente acusado em 2004 —pouco depois foi absolvido— de lançar ao mar 22 camponeses de dentro de um avião. Ele se aposentou, condecorado, em 2008, apesar de também ter sido acusado de suposta ligação com o narcotráfico. Morreu em 2012 em um dos bairros mais ricos da capital mexicana em um ataque com a marca do tráfico: dois desconhecidos em uma moto atiraram nele.
Os locais e depoimentos mencionados na Comissão tornam impossível não vincular os acontecimentos de 40 anos atrás com a tragédia de 2014 em Iguala. Os índices de pobreza de Guerrero são idênticos: 70% da população em 1962 ante 69,7% em 2013, apesar de o Governo mexicano ter dedicado milionários programas oficiais para combatê-la. Os protestos que deram início ao movimento subversivo contra o Governo mexicano eram, no início, pacíficos, até que uma série de matanças nos anos 1960 e uma fraude eleitoral em 1962 levaram a Associação Cívica Guerrerense (ACG, fundada, entre outros, por Genaro Vázquez) a optar pela clandestinidade e ao surgimento da figura de Lucio Cabañas, um professor rural transformado em guerrilheiro que se converteu em uma das lideranças mais visíveis do movimento. Os tiroteios e as mortes eram habituais. Vázquez e Cabañas saíram da Escola Normal Rural de Ayotzinapa, a mesma dos 43 estudantes desaparecidos desde setembro.
Em 1974, o Partido dos Pobres, já convertido em guerrilha, sequestrou o senador Rubén Figueroa Figueroa, um homem que se orgulhava tanto de sua rede de influência que era chamado de tigre de Huitzuco, e que fazia campanha pelo Partido Revolucionário Institucional (PRI) para o cargo de governador.Liberado após dois meses, já no cargo de governador, as garras do tigre de Huitzuco foram implacáveis. Muitos dos detidos datam de seu mandato, entre 1975 e 1981.
As vítimas têm rostos e histórias. Algumas são famílias inteiras. Como os Castro Molina. O pai, Petronilo, e os três filhos, Guadalupe, Fabiola e Eleazar, estão desaparecidos desde 1972. Ou Carlos Díaz Frías, que se enforcou em 1978 em sua cela porque não aguentava mais as torturas. Seus familiares ainda esperam uma resposta.
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