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Coluna
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Reféns da intolerância

Nós, os brasileiros, somos intolerantes, mas é assustador perceber o tamanho desse problema, fruto da ignorância e da arrogância

Pode ser que você nunca tenha ouvido falar do Fussball-Club Sankt Pauli, de Hamburgo. O time, fundado em 1910, disputa a segunda divisão da Bundesliga e apenas eventualmente frequentou a primeira. Ainda assim, conta com 11 milhões de torcedores na Alemanha e tem mais de 500 fãs-clubes espalhados pelo mundo. Entre seus inúmeros simpatizantes anônimos, encontro-me eu, que acompanho entusiasmado sua trajetória, desde este meu refúgio na zona oeste de São Paulo.

Na semana passada, alguns torcedores do Grêmio, de Porto Alegre, reincidiram como protagonistas de um dos episódios mais lamentáveis da história recente do Brasil. Indignados com o fato de o time ter sido justamente punido com a exclusão da Copa do Brasil, por causa das manifestações racistas contra o goleiro Aranha, resolveram agredir novamente o jogador do Santos chamando-o, desta vez, de veado. O raciocínio, de puro deboche, era: já que ofendê-lo de macaco configuraria crime de injúria racial, espezinhá-lo como veado não estaria incorrendo em nenhuma transgressão da lei.

Infelizmente, os torcedores gremistas que reagiram desta maneira representam o pensamento médio da população brasileira, que não só está habituada a tratar os negros como cidadãos de segunda classe, e portanto se revoltam quando se veem acusados de racistas, como também estão acostumados a não respeitar a orientação sexual do outro, e por consequência não veem qualquer problema em agir com discriminação. A cor da pele diferencia as pessoas, mas não entre melhores ou piores, mais capazes e menos capazes, mas entre aqueles que chegaram ao Brasil por opção e os que aqui aportaram à força, como mão de obra escrava. Já a orientação sexual tem um cunho pessoal e não cabe a ninguém julgá-la e menos ainda condená-la.

Acossados por religiosos de várias denominações – e pela hipocrisia que conforma o nosso caráter - nenhum dos candidatos com chances de vencer as eleições presidenciais, Aécio Neves (PSDB), Marina Silva (PSB) ou a presidenta Dilma Rousseff (PT), defendem, por exemplo, mudanças na legislação para garantir direitos básicos aos casais homossexuais. Assim como batemos no peito para dizer que vivemos numa democracia racial, gostamos de lembrar da Parada Gay que reúne cerca de 3 milhões de pessoas na avenida Paulista, em São Paulo, como símbolo da nossa condescendência – no entanto, embora não haja estatísticas oficiais, em 2013 foram contabilizados cerca de 300 mortos no Brasil, vítimas de homofobia.

Acredito que todos já sabíamos que nós, os brasileiros, somos intolerantes – mas é assustador perceber, por meio das redes sociais, o tamanho desse problema, fruto da ignorância e da arrogância. Temos uma enorme dificuldade de conviver com opiniões contrárias ou divergentes das nossas. Somos cordiais com todos aqueles que, de alguma maneira, comungam conosco pontos de vista similares, mas basta o menor sinal de contrariedade para demonstrarmos toda a nossa fúria. Como não estamos familiarizados com o exercício do diálogo, ao invés de buscar convencer o outro com argumentos, partimos imediatamente para a tentativa de aniquilá-lo.

Tradicionalmente, o futebol está associado à imagem de virilidade e, por consequência, a machismo. Mas a tradição é o passado que se presentifica como farsa. Quisessem, os torcedores do Grêmio, ao invés de trocar as demonstrações racistas por homofóbicas, poderiam se mirar no exemplo do Sankt Pauli. Nascido em um bairro proletário de Hamburgo, nos anos 1980 o clube passou por uma grave crise financeira, que quase o levou à falência. Operários, artistas e a população em geral se uniram para salvar a equipe, participando ativamente de campanhas para arrecadar fundos. Na década de 1990, surgiram nos estádios jovens adeptos do neonazismo. A torcida imediatamente contrapôs-se ao fenômeno e refez os estatutos do clube, consignando que vestir a camisa do Sankt Pauli é defender, dentro e fora dos campos, princípios indiscutíveis, como ser antinazista, antirracista e anti-homofóbico. Assim, tornou-se exemplo e referência não só desportiva, como cultural e política para todo o resto da Europa.

A pergunta que permanece é: e nós, no Brasil, queremos de fato mudar alguma coisa?

Leia as outras colunas de Luiz Ruffato aqui.

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