_
_
_
_
PEDRA DE TOQUE
Tribuna
São da responsabilidade do editor e transmitem a visão do diário sobre assuntos atuais – tanto nacionais como internacionais

Entre os escombros

Os radicais do Hamas saem fortalecidos após os ataques de Israel graças ao rancor, ao ódio e à sede de vingança que a população de Gaza sentirá depois dessa onda de morte e destruição

Mario Vargas Llosa
FERNANDO VICENTE

Escrevo este artigo no segundo dia do cessar-fogo em Gaza. Os tanques israelenses se retiraram da Faixa, pararam os bombardeios e o lançamento de foguetes, e as duas partes negociam no Cairo uma extensão da trégua e um acordo de longo prazo que assegure a paz entre os adversários. A primeira parte é possível, sem dúvida, sobretudo agora que Benjamin Netanyahu declarou estar satisfeito – “missão cumprida”, foi o que disse – com os resultados do mês de guerra contra os moradores de Gaza, mas o segundo – uma paz definitiva entre Israel e Palestina – é, por enquanto, pura quimera.

O balanço desta guerra de quatro semanas é (até agora) o seguinte: 1.867 palestinos mortos (entre eles 427 crianças) e 9.563 feridos, meio milhão de desabrigados e cerca de 5.000 casas destruídas. Israel perdeu 64 militares e 3 civis, e os terroristas do Hamas lançaram sobre seu território 3.356 foguetes, dos quais 578 foram interceptados pelo sistema de defesa e os outros causaram apenas danos materiais.

Ninguém pode negar a Israel o direito de defesa contra uma organização terrorista que ameaça sua existência, mas também cabe a pergunta se uma carnificina semelhante contra uma população civil, a destruição de escolas, hospitais, mesquitas, locais onde a ONU acolhia refugiados, é tolerável dentro de limites civilizados. Semelhantes matança e destruição indiscriminada, além do mais, se abatem contra a população de um retângulo de 360 quilômetros quadrados ao qual Israel, desde que impôs em 2006 um bloqueio por mar, ar e terra, já submete a uma lenta asfixia, impedindo importar e exportar, pescar, receber ajuda e, resumindo, privando a região a cada dia das mais elementares condições de sobrevivência. Não falo de ouvir falar; estive duas vezes em Gaza e vi com meus próprios olhos o amontoamento, a miséria indescritível e o desespero com que se vive dentro dessa ratoeira.

O conflito pode ser estendido a todo o Oriente Médio e provocar um cataclismo

A razão de ser oficial da invasão de Gaza era proteger a sociedade israelense destruindo o Hamas. Isso foi conseguido com a eliminação dos 32 túneis que o Tsahal capturou e destruiu? Netanyahu diz que sim, mas ele sabe muito bem que está mentindo e que, ao contrário, em vez de afastar definitivamente a sociedade civil de Gaza da organização terrorista, esta guerra vai devolver o apoio da população que o Hamas estava perdendo a passos largos por seu fracasso no governo da Faixa e por seu fanatismo demencial, o que o levou a se unir à Al Fatah, seu inimigo mortal, aceitando não ter nenhum representante nos Governos da Palestina e de Gaza, inclusive admitindo o princípio de reconhecimento de Israel, que tinha sido exigido por Mahmoud Abbas, o presidente da Autoridade Nacional Palestina. Por desgraça, o moribundo Hamas sai revigorado desta tragédia, com o rancor, o ódio e a sede de vingança que a dizimada população de Gaza sentirá depois desta chuva de morte e destruição que padeceu durante estas últimas quatro semanas. O espetáculo das crianças arrebentadas e as mães enlouquecidas de dor escavando as ruínas, assim como o das escolas e clínicas em pedaços – “Um ultraje moral e um ato criminoso”, segundo o secretário-geral da ONU, Ban Ki-Moon – não vai reduzir, e sim multiplicar, o número de fanáticos que querem fazer Israel desaparecer.

O mais terrível desta guerra é que não resolve, pelo contrário, agrava o conflito palestino-israelense e é apenas mais uma sequência em uma corrente interminável de atos terroristas e enfrentamentos armados que, em curto ou longo prazo, podem se espalhar por todo o Oriente Médio e provocar um verdadeiro cataclismo.

O governo israelense, desde os tempos de Ariel Sharon, está convencido de que não há negociação possível com os palestinos e que, portanto, a única paz possível de alcançar é a imposta por Israel através da força. Por isso, embora faça declarações rituais a favor do princípio dos dois Estados, Netanyahu sabotou sistematicamente todas as tentativas de negociação, como ocorreu com as conversas que o presidente Obama e o secretário de Estado John Kerry se empenharam em promover, assim que este assumiu seu cargo, em abril do ano passado. E por isso apoia, às vezes com sigilo, e às vezes abertamente, a multiplicação dos assentamentos ilegais que transformaram a Cisjordânia, o território que o Estado palestino teoricamente ocuparia, em um queijo gruyère.

Esta política tem, lamentavelmente, um apoio muito grande entre o eleitorado israelense, no qual aquele setor moderado, pragmático e profundamente democrático (o do Peace Now, ou Paz Agora) que defendia a resolução pacífica do conflito mediante negociações autênticas foi se encolhendo até se tornar uma minoria quase sem influência nas políticas do Estado. É verdade que ali existe, ainda, tentando fazer com que suas vozes sejam ouvidas, pessoas como David Grossman, Amos Oz, A. B. Yehoshua, Gideon Levy, Etgar Keret e muitos outros, salvando a honra de Israel, assumindo suas posições e protestando, mas a verdade é que são cada vez menos e que cada vez têm menos eco em uma opinião pública que foi se tornando mais extremista e autoritária. (Sabemos que em seu próprio Governo Netanyahu têm ministros como Avigdor Lieberman, que o consideram moderado e ameaçam retirar o apoio de seus partidos se ele não castigar com mais dureza o inimigo.) Cegados pela indiscutível superioridade militar de Israel sobre todos seus vizinhos, em especial a Palestina, chegaram a acreditar que selvagerias como a de Gaza garantem a segurança de Israel.

Os bombardeios contra a população civil de Gaza tiveram no mundo inteiro um efeito terrível

A verdade é exatamente a oposta. Embora ganhe todas as guerras, Israel é cada vez mais fraco, porque perdeu toda aquela credencial de país heroico e democrático, que converteu os desertos em pomares e foi capaz de assimilar em um sistema livre e multicultural pessoas vindas de todas as regiões, línguas e costumes, assumindo cada vez mais a imagem de um Estado dominador e prepotente, colonialista, insensível às exortações e chamados das organizações internacionais, confiando somente no apoio automático dos Estados Unidos e em sua própria potência militar. A sociedade israelense não pode imaginar, em seu ensimesmamento político, o terrível efeito que tiveram no mundo inteiro as imagens dos bombardeios contra a população civil de Gaza, das crianças despedaçadas e a das cidades transformadas em escombros e como tudo isso vai convertendo-o de país-vítima em país-carrasco.

A solução do conflito Israel-Palestina não virá de ações militares, mas de uma negociação política. Foi o que disse, com argumentos muito lúcidos, Shlomo Ben Ami, que foi ministro de Relações Exteriores de Israel precisamente quando as negociações com a Palestina – em Washington e Taba, nos anos 2000 e 2001 – estiveram a ponto de dar resultados. (O que impediu foi a insensata negativa de Arafat de aceitar as grandes concessões que Israel tinha feito.) Em seu artigo A Armadilha de Gaza (EL PAÍS BRASIL, 29 de julho de 2014), ele afirma que “a continuidade do conflito palestino debilita as bases morais de Israel e sua posição internacional” e que “o desafio para Israel é vincular sua tática militar e sua diplomacia a uma meta política claramente definida”.

Espero que vozes sensatas e lúcidas como as de Shlomo Ben Ami terminem sendo escutadas em Israel. E espero que a comunidade internacional atue com mais energia no futuro para impedir atrocidades como a que acaba de sofrer Gaza. Para o Ocidente, o que ocorreu com o Holocausto judeu no século XX foi uma mancha de horror e de vergonha. Que não seja assim, no século XXI, com a agonia do povo palestino.

Direitos mundiais de imprensa em todas as línguas reservados a Ediciones EL PAÍS, SL, 2014.

© Mario Vargas Llosa, 2014.

Tu suscripción se está usando en otro dispositivo

¿Quieres añadir otro usuario a tu suscripción?

Si continúas leyendo en este dispositivo, no se podrá leer en el otro.

¿Por qué estás viendo esto?

Flecha

Tu suscripción se está usando en otro dispositivo y solo puedes acceder a EL PAÍS desde un dispositivo a la vez.

Si quieres compartir tu cuenta, cambia tu suscripción a la modalidad Premium, así podrás añadir otro usuario. Cada uno accederá con su propia cuenta de email, lo que os permitirá personalizar vuestra experiencia en EL PAÍS.

En el caso de no saber quién está usando tu cuenta, te recomendamos cambiar tu contraseña aquí.

Si decides continuar compartiendo tu cuenta, este mensaje se mostrará en tu dispositivo y en el de la otra persona que está usando tu cuenta de forma indefinida, afectando a tu experiencia de lectura. Puedes consultar aquí los términos y condiciones de la suscripción digital.

Arquivado Em

Recomendaciones EL PAÍS
Recomendaciones EL PAÍS
_
_