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De risada em punho

A Flip chega ao final fazendo o público rir com autores sérios e discursos que desafiam o poder

Fernanda Torres e o escritor peruano Daniel Alarcón.
Fernanda Torres e o escritor peruano Daniel Alarcón.Walter Craveiro

Riu-se muito na 12ª flip - Festa Literária de Paraty. Ao mesmo tempo, não faltaram, ao longo dos cinco dias de evento, saudáveis atentados ao poder. Mas como é possível rir e relaxar os músculos do corpo (e do cérebro) e ainda provocar o status quo, balançando aquilo que precisa de movimento pra mudar? Só o humor é capaz de responder a pergunta e, dentro do complexo universo humorístico, muitas vezes diminuído em sua importância intelectual e artística, só alguns poucos autores, poderosos e engraçados, podem fazer a curva no establishment e tratar a questão.

Não à toa, querendo tratar das relações entre letras e poder, a Flip deste ano escolheu Millôr Fernandes, um dos espíritos mais livres do pensamento brasileiro, para tematizar a festa e fazer uma homenagem. Não à toa, da mesma maneira, foram escolhidos para compor a programação nomes como Etgar Keret, Antonio Prata, Fernanda Torres, Juan Villoro, Gregorio Duvivier e, inclusive, Vladímir Sorókin – um dos raros escritores russos a participar de um encontro em torno aos livros no Brasil e que, em meio à obra crítica que marca seu trabalho e à tradição dramática da clássica literatura russa, tem uma obra vastamente bem-humorada.

É verdade que “o humor está em alta” no Brasil, mas também é inegável que muita piada anda passando por comédia, quando na verdade nada mais é que uma brincadeira barata. A constatação é de Gregorio Duvivier, o único convidado a participar das mesas oficiais a ser anunciado como humorista, graças ao sucesso de seu Porta dos Fundos, mas que é tão eloquente na poesia e na crônica como enfrente às telas.

Na mesa Poesia e Prosa, que o autor dividiu com a jornalista e romancista Eliane Brum, colunista do EL PAÍS, e o poeta e roteirista Charles Peixoto no início da programação, ele começou lendo um trecho de Liberdade, Liberdade, um musical de 1965, escrito por Millôr Fernandes e Flávio Rangel, em que se ironiza a disposição das pessoas numa plateia, obrigadas a sentar-se à direta ou à esquerda, jamais no centro. “O Millôr está fazendo uma piada sobre a necessidade de tomar posições, porque ele é muito subversivo. Mas o que ele está fazendo é: ‘Assumam’. O humor é sempre sobre assumir posições: tem que ser de um lado ou de outro e jamais no centro. Você tem que assumir seus lugares, de alguma maneira, assim como na imprensa”, disse, em entrevista ao EL PAÍS.

Duvivier acha que, em tempos de polaridades como os atuais, o humor perdeu a humanidade e é confundido “com a falta de afeto, com a galhofa”. Nesse sentido, hoje em dia no país, fazer humor pode ser visto como algo que não é. “Acho que o humor no Brasil passa por um processo que, em outros lugares, aconteceu muito antes. É algo visto como um mundo à parte. 'Ah, o humor são anedotas, não tem criatividade e, sobretudo, não tem pensamento. É pra fazer rir irracionalmente’. Mas é uma arte mental, e a risada é um trabalho intelectual sempre”, opinou.

Tanto é assim, que humoristas de verdade – como Millôr – são extremamente lúcidos. Talvez por isso o israelense Etgar Keret, que ao lado do mexicano Juan Villoro falou sobre tematizar em sua obra um país que pode ser o paraíso, mas também o inferno, foi capaz de falar de guerra e paz em um momento tão delicado como o atual, com os ataques de Israel à Faixa de Gaza, fazendo rir, mas sobretudo fazendo pensar, uma plateia pra lá de entusiasmada com suas histórias. Para Keret, a ficção é a "forma subversiva de nos lembrar que somos humanos e precisamos exercitar a empatia” – ainda mais quando "se apóia no humor”, como as histórias que escreve.

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Um dos últimos debates do evento, Romance em dois atos, entre a atriz e agora romancista Fernanda Torres e o escritor peruano Daniel Alarcón, um dos mais aclamados escritores jovens da atualidade, despediu-se de grande parte do público, justamente, com fartas risadas. O papo não precisou se politizar para ajudar a definir a literatura como um universo de sensibilidade capaz de promover importantes mudanças, pessoais ou não, tratando-se ou não de uma história engraçada. Bastou divertir a plateia, para que ela se despedisse de Paraty com a ideia de que ler e escrever pode ser algo, de fato, revolucionário.

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