Uma Copa das pernas
No país do “jogo bonito”, prenuncia-se um torneio de grande exigência física, no qual o Brasil ditará a tendência após a sua esmagadora vitória sobre a Espanha na Copa das Confederações
A uns 10 graus de temperatura e com uma umidade de 88%, a Espanha se abriga como pode numa concentração que parece ficar na Galícia: no meio do nada, nos arredores de Curitiba, onde a televisão repete incessantemente imagens das inundações dos últimos dias no Estado do Paraná. Enquanto isso, a Holanda, seu primeiro rival, tira a roupa na praia da Ipanema, com 30 graus. Há outros contrastes. O Brasil tem seu bunker a cerca de cem quilômetros do Rio, ao passo que a Alemanha dança em aldeias indígenas da Bahia, e os ingleses visitam favelas cariocas. Outras seleções estão preocupadas. A Argentina inteira cobre Messi com seu manto e se empapuça de doce de leite perto de Belo Horizonte, e no convívio de Portugal não tiram o olho da Virgem de Fátima, por dois motivos: as lesões de Cristiano Ronaldo e a epidemia de dengue que assola a região da sua concentração, na cidade paulista de Campinas, com 35.000 vítimas desde o começo do ano.
Como se vê, a Copa não é igual para todos, e menos ainda nestas eternas vésperas, tempo para que a FIFA estude como jogar suas corrupções no ventilador, que os organizadores apressem suas tarefas a marchas forçadíssimas, que Pelé faça participações publicitárias para elogiar o que vier ao caso e que, como contrapeso, Maradona desça a lenha no poder: “A FIFA é um poder feio, ganha 4 bilhões de dólares, e o campeão leva 35 milhões; essa multinacional está comendo a bola, e as pessoas precisam saber que Bill Gates ganha uma grana, mas [o presidente da FIFA, Joseph] Blatter a leva sem fazer nada”. Com a bola na sala de espera, são horas nas quais o futebol fica à margem, e só resta dar palpites sobre o que se espera do jogo.
O Brasil se bunkeriza, a Argentina cobre Messi e Portugal não tira o olho de Cristiano Ronaldo...
No país do “jogo bonito”, até o ex-presidente Lula enfatiza ultimamente que o Brasil aderiu ao “jogo feio”. “Para nós, sermos segundos seria como sermos os últimos”, salienta Roberto Carlos. Com o maracanaço no cangote, a Canarinha, amnésica em sua viagem futebolística do prazer para o dever, não tem sido refratária aos videntes de resultados que já abundam até no meio da sua torcida. É a tendência, por mais que o campeão atual, a Espanha, tenha outra marca. A da Roja é contracultural, tão difícil como arriscada de imitar, e tudo indica que será o grupo de Scolari é que ditará o tom. Sua maneira de devastar o elenco de Del Bosque na Copa das Confederações, há um ano, com uma ânsia infinita, pernas hercúleas e as chuteiras afiadas como facas – 26 faltas sem cartões ao final – legitimou-a diante dos demais. Frente àquele Brasil, os espanhóis, com a mente e os corpos flácidos, pareciam um coro de coroinhas. O primeiro a observar isso foi Van Gaal, o selecionador holandês, que já pôs na lousa cinco zagueiros para conter os espanhóis. Resta ver se com os mesmos métodos de Van Bommel e De Jong na final da África do Sul.
Enquanto a maioria esquadrinha formas de se ajustar ao campo minado, a Espanha mantém sua compostura. Basta notar que, à espera da entrada de Diego Costa, sua verdadeira fragrância continua no meio campo. Tão peculiar é esta seleção que é na zona de trânsito onde administra tudo. É a equipe do falso nove quando seus principais competidores têm, precisamente no ataque, seus cartões de visita: Messi, Cristiano, Neymar, Rooney, Van Persie, Benzema, Luis Suárez… Só a Alemanha, que se afastou da sua tradição de ter pilastras no lugar de centroavantes, também põe agora o foco sobre o meio de campo, dependente que está do estilo refinado de Lahm, Schweinsteiger, Goetze, Kroos, Draxler e Özil.
Espanha, à vontade, sabe o que a espera, já pagou por isso na Copa das Confederações, aonde chegou com o tanque na reserva e topou com um Brasil a mil por hora e com condições climáticas asfixiantes. Del Bosque tomou nota, e agora lhe preocupa mais perceber no grupo o olhar do tigre, comprovar que o apetite se mantém. Montou um grupo competente como nenhum outro, e não por ser complacente, e sim por uma questão mental. Comprovou que esta equipe competiu maravilhosamente inclusive na adversidade, como quando teve que virar na África do Sul depois do golpe inicial contra a Suíça, ou quando precisou cerrar os dentes para ganhar em Paris a classificação para o Brasil. Essa é a grande cartada da Espanha, que sabe o que está em jogo e o que a espera. E não é outra coisa senão uma Copa das pernas, de grande exigência física, por muito que os jogadores cheguem desgastados até o limite. Talvez por isso, nada melhor do que deixar a bola correr. E que corra o quanto antes, para combater a FIFA, o frio, a dengue, o sol e o que for necessário.
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