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crise ucraniana

O incêndio de um edifício durante os confrontos em Odessa deixa 36 mortos

Dois pilotos ucranianos morrem após seus helicópteros serem abatidos por mísseis em Slaviansk No sul, 30 morreram por causa da fumaça, e 8 ao saltarem pelas janelas

M. A. Sánchez-Vallejo (enviada especial)
Um incêndio na sede sindical de Odessa deixou pelo menos 38 mortos.
Um incêndio na sede sindical de Odessa deixou pelo menos 38 mortos.REUTERS

Pelo menos 31 pessoas morreram nesta sexta-feira por causa de um incêndio na sede dos sindicatos nas cidade de Odessa, ao sul da Ucrânia, após confrontos entre simpatizantes do Governo de Kiev e ativistas pró-russos, segundo o Ministério do Interior, citado pela Reuters. Oito pessoas morreram ao saltar pelas janelas do prédio, tentando fugir das chamas, e outras 30 foram vitimadas por intoxicação de monóxido de carbono. “É um ataque incendiário criminoso”, salientou o ministro do Interior.

Após vários anúncios de uma “operação antiterrorista” repetidamente fracassada, e numa desesperada tentativa de recuperar o controle sobre o leste rebelde do país, o Exército ucraniano desencadeou na madrugada de sexta-feira a “fase ativa” de uma operação militar contra o reduto separatista de Slaviansk, posto avançado dos ativistas pró-russos. Depois de várias horas de combates, nas quais os milicianos derrubaram com mísseis dois helicópteros Mi-24, matando dois de seus tripulantes, a situação em Slaviansk era de tensa expectativa, eventualmente rompida pelo fogo cruzado da propaganda – ambos os lados garantem ter presença semelhante nas ruas, sem que seja possível confirmar os dados – e pelas numerosas barricadas incendiadas em torno da cidade, de 130.000 habitantes. O prefeito “rebelde”, Viacheslav Ponomariov, elevou a cinco o número de mortos no seu lado, sendo três milicianos e dois civis.

No meio da tarde, ninguém se atrevia a dar a ofensiva por concluída, nem a arriscar quais serão os próximos objetivos rebeldes do Exército de Kiev na região, além de uma ponte recuperada perto da cidade, custodiada por um batalhão de 140 soldados e entre oito e dez blindados, cuja passagem dezenas de civis tentavam impedir estendendo-se na via, como mostram vários vídeos amadores publicados na internet. Kiev afirma ter retomado também o controle de uma dezena de postos de controle, quase todos na periferia sudeste, por onde Slaviansk se comunica com Donetsk e Lugansk, outros dois importantes focos da sublevação.

“Nos bairros do sul estão todos enfiados em casa, embora não se ouçam disparos há horas, e algumas lojas já abriram”, contava, no meio da tarde da sexta-feira, a estudante Inna, aluna da Universidade do Donetsk com familiares em Slaviansk. “As autoridades [rebeldes] disseram para que eles não saíssem à rua pelo menos durante o dia de hoje [sexta-feira], ou até que os soldados vão embora”. A “operação de castigo” empreendida por Kiev, conforme a descrição do Kremlin, deixou Slaviansk isolada do mundo, com todos os acessos rodoviários bloqueados. A anormalidade do tráfego era bem patente inclusive a uma centena de quilômetros, na saída norte de Donetsk, onde patrulhas de policiais apoiados por forças especiais paravam todos os veículos para perguntar o destino, advertindo para o “estado de guerra” em Slaviansk. Após mais 15 quilômetros, o aparente controle das autoridades estatais era substituído pela presença de milicianos da autoproclamada República de Donetsk, todos eles fortemente armados, com capuzes e atrás de trincheiras montadas com sacos de terra em intervalos regulares na rodovia. A bandeira do comando rebelde tremulava à vontade durante o resto do percurso para o norte.

Slaviansk não foi a única cidade a registrar incidentes. Em Odessa, um confronto entre ativistas pró-ucranianos e pró-russos deixou uma vítima mortal, e em Yasinuvata, a 15 quilômetros de Donetsk, os rebeldes tomaram a estação ferroviária, interrompendo as comunicações com o norte e, de passagem, o último cordão umbilical de Slaviansk com o mundo. Kramatorsk, teoricamente o objetivo conjunto da operação militar, também teve interrupções no seu acesso ferroviário a Donetsk e à aglomeração urbana e industrial de Slaviansk, à qual pertence.

Depois de Slaviansk, outros redutos rebeldes contavam as horas nesta sexta-feira para receberem o ataque de Kiev

Depois de Slaviansk, outros redutos rebeldes contavam as horas na sexta-feira para receberem o ataque de Kiev. Em Gorlovka, importante centro minerador e químico, com 270.000 habitantes – o dobro da população de Slaviansk –, os ativistas das Tropas Populares do Donbas, o grupo que controla toda a cidade, faziam uma nervosa demonstração de força. Em fardas de campanha sem distintivos, encapuzados até quase a cegueira, os milicianos redobraram o controle sobre a prefeitura e a delegacia central de polícia da cidade, que foram ocupadas na quarta-feira e estão agora semiocultas atrás de montanhas de pneus e arames farpados. “Todos os rapazes são de Gorlovka, aqui não há nenhum russo”, explicava, em frente à prefeitura, o civil Alexander Boroviov, que montava guarda. “Estão armados com AKSUs [variante curta do fuzil Kalashnikov] velhos, mas ninguém sabe de onde os tiraram e ninguém pergunta”, acrescentava. Outro “defensor” civil, Vladimir Druslukov, apontava a possibilidade de que as armas tenham sido tomadas da polícia durante a ocupação da delegacia, como em outros pontos do leste ucraniano.

Ambos tinham como certo um ataque do Exército de Kiev “em questão de horas”. “Está tudo preparado. Os habitantes de Gorlovka, os civis, irão se interpor entre o edifício e os soldados, como escudo humano. Dentro há muita gente pronta para repelir a agressão se essa barreira humana falhar ou se os soldados dispararem contra eles”, contava Boroviov. É impossível averiguar a cifra de milicianos preparados para o combate. “É segredo”, desconversa Boroviov. O uso de lançadores de mísseis por parte dos rebeldes de Slaviansk para abater os dois helicópteros reforçou a tese de Kiev sobre o apoio financeiro, logístico e militar de Moscou aos separatistas. O Kremlin, por sua vez, acusou Kiev de atacar indiscriminadamente a população civil e de usar “mercenários” em seu avanço contra Slaviansk.

A oito dias do referendo federalista convocado pela República de Donetsk – ilegal para o Governo de Kiev, envolvido por sua vez na preparação de eleições cuja viabilidade foi posta em xeque na quarta-feira pelo próprio presidente interino do país, Alexandr Turchinov –, a queda de braço entre Kiev e o leste se intensifica. Mas, in loco e nas urnas, os rebeldes parecem ainda estar na dianteira.

A Igreja fica sem clientela

Na cidade rebelde de Khartzysk, onde os líderes da autoproclamada República de Donetsk asseguram contar com o apoio de 70% a 80% da população (um total de 60.000 habitantes), a sublevação contra Kiev ganhou um aliado vestido de preto. O padre Vassily, que pertence ao Patriarcado de Moscou, deslegitima a todos os que empunham armas para enfrentarem seus “irmãos”. Mas, no meio da conversa, enquanto assiste a uma pitoresca cerimônia cívico-patriótica em homenagem ao poeta Taras Shevchenko, o sacerdote, que ronda os 40 anos e ostenta um crucifixo de madeira cujo peso é visivelmente excessivo para o seu pescoço, revela suas verdadeiras simpatias: “Embora eu seja ucraniano, assim como meus pais, sou a favor da união total da Rússia, Belarus e Ucrânia”. Do leste da Ucrânia, ele quer dizer? “Não, não, de toda a Ucrânia, o país inteiro, junto com a Rússia e Belarus. Não apoio a divisão [da Ucrânia].”

O sacerdote se queixa de ter perdido clientela desde que estourou a revolução do Maidan, que em fevereiro desalojou do poder o presidente Viktor Yanukovich, o que, por sua vez, motivou a rebelião no leste. “Agora os paroquianos estão politicamente mobilizados. Mas quando repararem que todas as revoluções são um castigo divino pelos pecados cometidos, voltarão para a igreja.” Aí, acredita Vassily, a Ucrânia inteira se fundirá no mapa com a mãe Rússia e com Belarus, a antiga Rússia Branca.

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