O dia em que ‘Jesus Cristo’ mentiu
Torturador engana Comissão da Verdade durante depoimento em São Paulo. Outro investigado não é encontrado
De “eu sou Deus” a “eu sou temente a Deus”. Se fosse possível sintetizar a fala de Dirceu Gravina, apontado como torturador durante o regime militar em São Paulo, essas seriam algumas de suas palavras. Quem antes era apelidado de Jesus Cristo passou a dizer que acreditava veementemente no filho do Senhor.
Na década de 70, quando tinha seus 20 e tantos anos e agia em nome do órgão repressor do Governo, o policial civil Dirceu Gravina tinha fama de entrar nas celas dos presos políticos e falar: “Eu sou Deus. Eu sou Jesus Cristo. Eu tenho o poder da vida e da morte”. Isso tudo antes de iniciar uma série de tortura, segundo testemunhas. Também conhecido como JC, o policial usava longos cabelos e estava sempre com um crucifixo pendurado no peito.
Identificado como um torturador extremamente sádico por uma de suas vítimas, a ex-militante da Ação Libertadora Nacional Darci Miyaki, Gravina mentiu aos membros da Comissão Nacional da Verdade, que o interrogaram a portas fechadas. Aos 65 anos, hoje ele é um delegado da Polícia Civil extremamente acostumado com depoimentos. Ao ser interrogado pelo ex-ministro da Justiça José Carlos Dias e pela advogada Rosa Cardoso, porém, não conseguiu fugir das contradições e apelou ao seu credo religioso para tentar fugir das perguntas mais duras.
“Ele negou que tenha torturado algum preso. Mas não negou que houvesse tortura. Falou, por exemplo, que ouvia gritos de presos. Mas dizia que eles estariam simulando. Quando perguntei como se distingue um grito de fingimento, ele tentou esquivar”, afirmou Dias.
Em um canto da sala em que Gravina estava sendo ouvido, um assessor da comissão que esteve preso em uma das cadeias onde ele exercia suas sessões de tortura acompanhou o depoimento. Era Ivan Seixas, que não se identificou ao depoente. Quando Gravina foi questionado se conhecia alguém chamado Ivan Seixas, o policial disse que sim, que já o havia encontrado há alguns anos, mas há algum tempo não o via. Mas quando pediu para ele apontar quem era Seixas na sala, ele disse que o assessor não estava na sala. “Foram várias contradições”, ressaltou Dias.
Para Rosa Cardoso, alguns dos torturadores durante a ditadura se negam a confessar seus crimes porque não querem fazer suas famílias sofrerem com a vergonha de ter um pai torturador. “Os filhos, os netos ficariam envergonhados ao saber o que fizeram”, ponderou.
Até agora, quase dois anos após o início dos trabalhos da comissão, poucos são os que fazem o que o coronel Paulo Malhães fez no fim de março à mesma comissão da verdade, ao admitir que matou em nome de um regime de exceção e que tinham a convicção de que estavam agindo da maneira adequada.
O regime ao qual Gravina serviu durou 21 anos. O seu depoimento, menos de duas horas. Acabou no momento em que os membros da comissão perceberam que não arrancariam nem uma palavra do policial que valesse a pena.
Além da pecha de torturador, Gravina carrega em sua ficha duas acusações. Responde uma ação civil pública pela tortura e pelo desaparecimento de seis pessoas, entre elas Yoshitane Fujimori e de Aluizio Palhano Pedreira Ferreira, ambos militantes da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), o mesmo movimento onde a presidenta Dilma Rousseff militou. E também a uma ação penal ao lado do famoso coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra - um dos símbolos da ditadura em São Paulo - pelo sequestro e tortura de Aluizio Palhano.
Nesta segunda-feira, estavam agendados outros dois depoimentos à comissão da verdade. Porém, somente no dia do interrogatório, o órgão foi informado que um dos depoentes, Roberto Artoni, havia morrido em janeiro. O outro, o militar reformado Carlos Alberto Augusto, mudou de endereço e não foi encontrado. Até o fim do ano outros 50 militares suspeitos de praticarem torturas e outros delitos deverão ser ouvidos.
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