“Existem atores que são como Cristiano Ronaldo, que prefere fazer os gols do que o resultado final do time”
Gael García Bernal criou-se na telona nas mãos dos mestres do ofício Mexicanos como González Iñárritu y Alfonso Cuarón e espanhóis como Almodóvar Teve Hollywood aos seus pés, mas prefere certo nomadismo em sua profissão Fomenta o documentário com seu projeto ‘Ambulantes’ em toda a América Latina


Com seu rosto, o cinema latino-americano começou uma nova era. O frescor, a contundência entre romântica, inquieta e desafiante que ele transmitia à câmera acabou sendo toda uma metáfora do tom que despontou ao mundo em 2000, quando Amores Brutos (Amores Perros) foi projetado no Festival de Cannes. Através de Gael García Bernal e do talento de Alejandro González Iñárritu se resumia essa nova linguagem futura que chegava do outro lado da fronteira: pujante, vivificante, tremenda, radical e profunda. Poderia ter sido uma estrela valorizada em qualquer âmbito, Hollywood inclusive, mas García Bernal foi fiel à sua identidade e preferiu desenvolver uma carreira mais alternativa, intuindo que nesse novo contexto a voz latina teria ressonâncias insuspeitadas. Hoje, ele exibe um currículo com paradas no México, Espanha, Argentina, Chile, Peru, Brasil e também nos EUA, com filmes como E Sua Mãe Também, com Alfonso Cuarón, “meu mentor”, Babel, No, Má Educação, O Crime do Padre Amaro... García Bernal se colocou na onda da pujança latina global e acertou. Ele nos recebeu no Hay Festival de Cartagena de Índias (Colômbia).
Em que medida persiste o impacto de Amores Brutos? É um filme muito forte, analisando-o em perspectiva, talvez uma das razões do seu sucesso resida em que o mundo necessitava novas geografias, novos rostos, novas sensações. Nesse contexto, com essa alquimia foi que Amores Brutoschegou às pessoas. Era Cannes em 2000. Nesse ano competia Lars von Trier com Dançando no Escuro.
Eu fui testemunha disso nesse festival. Não só Lars von Trier; havia também os irmãos Coen com E Aí, Meu Irmão, Cadê Você?, Bergman e sua sombra como roteirista de Infiel, entre clássicos e emergentes, não estava nada mal... Mas foram vocês que causaram impacto. Vocês esperavam isso? Não. Além disso, tampouco estávamos em seção oficial, não havia espaço para filmes latino-americanos nem mexicanos em Cannes, nem em lugar nenhum, de fato.
Com exceção de Arturo Ripstein, exclusivamente no caso mexicano. Sim, mas havia alguns outros, com bons projetos, que saíam ou não. No nível latino-americano, Walter Salles também vinha abrindo espaço com Central do Brasil. Esse filme mostrava uma identidade, uma fidelidade a essa forma própria de ver o mundo. Talvez Central do Brasil abrisse caminho com uma voz mais diplomática, enquanto González Iñárritu o fazia com violência.
México, melhor que não nos possa abarcar a retórica. Para quê?
Mas depois ele mesmo mostrou ser um dos grandes em nível mundial, seu talento teve poderosa projeção global, sobretudo com Babel. Também estava nessa edição o primeiro filme de Rodrigo García e acontece que ambos se alimentaram de Buñuel. Somos conscientes da sua grandeza? Eu assisto bastante aos seus filmes, recentemente repassei filmes seus que grosseiramente chegaram a chamar de encomendados. Não pode haver essa palavra boba e castradora para alguém como Buñuel, porque desde o momento em que ele decide um enquadramento, já estava posta sua própria marca. O Alucinado, por exemplo, podemos considerá-lo como uma encomenda? Trata-se de um filme que obriga você a questionar grandes temas: a diferença de gênero, a necessidade de equanimidade. O que o cinema tem de bom é que obriga a eliminar os discursos e as visões únicas, uniformes, e esse filme faz um grande discurso, não tanto sobre o machismo, fascinante em todos os sentidos, cinematograficamente antes de mais nada, mas também no tom que exala. O senso de humor com que trata situações terríveis.
Eram as obsessões de uma figura bastante paradoxal que, com frequência, nem ele mesmo entendia. Buñuel chegou ao nosso país com a excepcionalidade de não ser dali e com sua visão própria do mundo. Acontece com frequência que, de fora de seu círculo, se conferem a certos criadores etiquetas e intenções que eles não buscam. Escutei o escritor Élmer Mendoza no Hay Festival. Quando ele é lido fora, na Europa, na França, lhe dão uma dimensão social que não é consciente para esses criadores. No caso de Mendoza, ele já nem desmente. Com Amores Brutos acontece a mesma coisa. Mas isso, ao mesmo tempo, faz com que sejam obras de criadores muito sofisticados porque trazem intrinsecamente dimensões das quais nem eles mesmos se dão conta. Muitos trabalham para que essas dimensões existam, mas na América Latina isso vem naturalmente.
De fábrica? Comigo acontece, aonde quer que eu vá, acabo explicando o México. Parece que fazemos as coisas com desejo de mudança e, mais do que um desejo explícito, emerge inconscientemente um enraizamento comprometido que temos em tudo na hora de contar nossas histórias. No México, um dos fatores que mais influíram para que a revolução pudesse ser feita foi o cinema, e assim o cinema adquiriu uma dimensão de motor de mudanças que não se esgotou até hoje. É indigenista, por exemplo, muito orgulhoso das suas raízes. Enquanto os gringos faziam caricatura disso, de forma espetacular e propagandística, nós nos mostrávamos muito orgulhosos dessa condição. Talvez isso tenha se tornado às vezes em algo limitador porque fixava um padrão concreto, talvez ideal, quando não era para tanto. Mas servia de viveiro perfeito para criadores como Buñuel.

Você teve Hollywood aos seus pés. Por que resiste? Dignidade? Orgulho? Talvez essa consciência de que representa agora algo muito insólito no panorama global que lhe permite se fazer de rogado? É uma questão de preferências. Por que, podendo fazer Diários de Motocicleta, eu deveria me limitar a um papel em A Vida Secreta de Walter Mitty? Como dizia nosso falecido poeta Pacheco, devemos aproveitar essa pequena coincidência de pertencer a um mundo no qual 500 milhões de pessoas falam espanhol. Na decisão de um latino de ir viver nos EUA, geralmente, o aspecto artístico conta muito pouco. São prioridades. Para mim é importante conhecer países diferentes, viajar, me divertir, fazer muitas coisas em diversos lugares. O privilégio no meu caso é não me fechar no mundo bastante exclusivo de Hollywood.
Você de fato vê assim? Sim. E eu vivi isso na fronteira. Entrar já é uma baita experiência. Você tem, literalmente, que atuar, sorrir, além de esperar em filas. Você chega e as regras são outras, outras imposições morais fortes, puritanas, que te limitam. E a volta, entretanto, é tudo ao contrário. Uma porta giratória, como se você saísse ao jardim: “Ahhh, agora sim consigo respirar”, e você deixa de se preocupar com essas figuras chatas que não te deixam sujar os móveis de plástico. É isso... as restrições têm os seus prós e os seus contras, mas as liberdades também. Na América Latina existem as suas vantagens e também as desvantagens. Mesmo assim, eu escolho essa liberdade e desfrutar do privilégio de poder fazer o que eu gosto.
E também não de forma aloucada. Com sorte, isso sim, sorte e aproveitando a onda de filmes que, apesar de seus baixos orçamentos, estreiam no mundo inteiro, como Diários de Motocicleta, de Walter Salles, que foi visto maciçamente nos EUA. Isso se fechou depois. Eles já não admitem outro tipo de cinema de forma tão aberta, exceto no ano passado, em que ocorreu uma coisa inédita. O filme em língua estrangeira – e é ridículo que ali se considere o espanhol língua estrangeira, quando é tão falado quanto o inglês – mais assistido foi esse de Derbez, Não Se Aceitam Devoluções, uma comédia que você assiste e pensa: “Puta merda, eu pensei que estava tudo perdido!”, Mas você percebe que não.
Existe espaço lá? Pois ao menos no cinema, sim. Em outros campos, como o literário, acho que menos, mas no cinema há público suficiente para que se possam tentar desafios industriais mais fortes. Embora ainda nos falte muito caminho por trilhar.
Na decisão de um latino e ir ou não morar nos EUA, conta pouco o lado artístico
Não é amigo de triunfalismos? Pois é, não sou. Quando você se dá conta de que no circuito latino-americano propriamente dito, o único filme que estreou em todos os nossos países foi No, e só, você percebe que há um problema. No México, estreiam poucos filmes argentinos; na Argentina simplesmente não passam filmes mexicanos; no Brasil é raro se ver tanto uns como outros. É preciso se opor a essa realidade.
Parece muito estranho que um ator fale de identidade com consciência. Afinal, de que mal você sofre? Sim, precisamos de uma consciência comum, saber que fazemos obras que têm muito de nós para que não nos aconteça isso. Podemos ver até a partir de uma perspectiva de entretenimento puro e duro. É um momento excelente para isso. Porque se depois acontecer de um de nossos filmes estrear nos países do entorno, onde geralmente não são vistos, o sucesso é precisamente esse.
Será que a questão é se aprofundar nos gostos do grande público sem perder as raízes, o sabor? Não sei aonde nos levará os tempos que correm, mas sou muito otimista com o campo de ação. É um mercado extensíssimo. Deveríamos nos sentir orgulhosos disso, eu pelo menos me sinto orgulhoso de poder fazer filmes na Argentina, no Chile, na Espanha, Colômbia, Peru e com todo o direito de falar dessas histórias em espanhol. Porque a linguagem é uma maneira de pensar o mundo. Por isso, Almodóvar, em seu momento, não quis se meter a fazer filmes em inglês. Sabia que não ficariam bons.
Fora correr o risco de ser engolido e se tornar mais papista que o Papa, caso de cineastas como Paul Verhoeven e Wolfgang Petersen e tal...... Há inúmeros casos. Há outros, como o checo Milos Forman, por exemplo, que passam a outro estágio e conservam sua personalidade, que pulam para Hollywood, mas fazem Um Estranho no Ninho ou Amadeus, quando acabam de fazer Os Amores de Uma Loira e O Baile dos Bombeiros.
Vejo que Forman é muito próximo a você, embora seja checo. É por causa daquela namorada eslovaca que você teve na época em que queriam fazer teatro itinerante por esse mundo de Deus? Era a época em que eu estudava teatro em Londres enquanto trabalhava no que podia, de garçom ou do que fosse preciso. Sonhava em percorrer a Europa e atuar onde fosse possível quando Iñarritu me ligou oferecendo esse papel em Amores Brutos: a minha vida passou de uma perspectiva ambulante, um tanto largada, para essa outra, também ambulante, mas completamente afortunada. Mas voltando a Forman, no seu caso, é o que Alfonso Cuarón chama de peão de luxo. A chave está em manter as suas atitudes dentro do seu mundo próprio, como acontece com Guillermo del Toro, por exemplo, de forma muito específica, porque seus filmes têm muita personalidade, mas ele precisa de um mercado que sustente o nível das suas produções.
No caso de Cuarón também. Se for para pode definir Gravidade de alguma forma, seria como uma maravilha. Bom, a história ali é o que menos importa, mas se começam a te explicar como foi filmado, não dá para entender. É alucinante, de um virtuosismo técnico e épico que, quando você sai do cinema, sai com a certeza de que nunca viu nada parecido, nunca. É um filme impossível de ser feito, o que o emparenta com Tarkovski e seu conceito do tempo ou com 2001, Uma Odisseia no Espaço, de Kubrick.
Ano incrível esse do seu padrinho Cuarón porque, dentre os diretores com os que você trabalhou, é ele que considera seu padrinho. Bem, ele é meu mentor, meu irmão mais velho, talvez das pessoas de quem a gente fica a vida toda interessado em de saber como andam. Posso compartilhar com ele uma relação muito próxima, apesar das loucuras nas quais se mete. Ele está interessado em mim, e eu nele.
Conte-me essa sua teoria dos Cristiano Ronaldo da interpretação. Como é?
Gael García Bernal

Nascido em Guadalajara (México) em 1978, filho de atores, estudou filosofia – que cursou na Universidade Autônoma Nacional do México – antes de emigrar para Londres para estudar na Central School of Speech and Drama. Poliglota (fala cinco idiomas, quatro deles fluentemente), é ator, produtor, diretor e organiza o festival de documentários Ambulante. Estreou em novelas mexicanas, mas se tornou astro desde que, em 2000, participou do assombroso Amores Brutos, de Alejandro González Iñarritu. Depois trabalhou com Alfonso Cuarón, Pedro Almodóvar, Walter Salles... uma trajetória que o levou a chegar aos 35 anos tendo participado de 43 filmes e dirigido um, intitulado Déficit.
Há atores muito, muito bons, que se interessam unicamente pelo personagem. Fazem filmes que não terão essa relevância, que não vão perdurar; soa mal, mas sim, para mim é a parte mais superficial de uma interpretação. Não tem nada de ruim, mas, no final das contas, você não está contribuindo para ser participante de tudo. Eu me inclino mais por fazer bons filmes. Ofereceram-me personagens excelentes que recusei fazer por não estar convencido de que o filme seria tão bom. Cristiano Ronaldo é esse tipo de jogador, prefere fazer ele o gol em vez de pensar no resultado final do time.
Mais do que para brilhar, você faz escolhas para perdurar? Isso não é ainda mais ambicioso. Bom, eu também tive decepções tremendas. A gente faz filmes sem calcular muito bem como vão ficar. Mas se você o contempla como espectador, finalmente o que ficam são os bons filmes, o conjunto. A visão superficial e marqueteira é a que predomina em muitos atores, mas, repito, isso tampouco tem nada de ruim.
Você anda projetando documentários pelo mundo no estilo do teatro La Barraca, de Lorca, com sua iniciativa Ambulante. A que se deve essa fé no gênero? Porque esses filmes contam coisas. O teatro que se levava aos povoados também fazia isso, como Bertolt Brecht ou Ibsen. É o princípio de quase tudo. Os documentários são como as versões cinematográficas dos ensaios teatrais, têm diferentes públicos e está ganhando seu público cativo. Eu sei porque vejo. Estou há nove anos fazendo isso e projetamos alguns filmes que foram assistidos por 100.000 pessoas. Isso amplia muito a motivação dos documentaristas. Muitas vezes eles se perguntam para que fazer seu trabalho se vão acabar mostrando-o apenas em salas de arte e ensaio da Dinamarca. Por que caralho não mostrá-lo em Ciudad Juárez?
Estamos há algum tempo falando e conseguimos passar por uma definição de México. Como você diz que sempre lhe pedem em todos os lugares, já não aguento me segurar: o que é e como é esse seu país? Recuso a ambição de vislumbrar toda essa imensidão. No novo livro de Álvaro Enrigue, Muerte Súbita, que ganhou o prêmio Herralde, ele fala sobre como uma cultura ficaria condenada a não poder entender sua própria beleza. O México é um cadinho onde se exemplificam todas as batalhas do planeta, é ao mesmo tempo um viveiro de bondade e de perspectivas frescas, positivo diante da violência, e tem alguma coisa que, como diz Guillermo del Toro quando lhe pedem o mesmo, nos leva a pensar que talvez tenhamos tanta sorte por estarmos cheios de vida.
A América Latina pode ser definida como esse continente de estirpes ou dinastias revolucionárias? Do PRI ao castrismo, do peronismo ao chavismo? Qual a sua opinião, por exemplo, desse abraço entre Fidel Castro e Peña Nieto? Pois bem, o México sempre esteve abraçado a Cuba desde a nossa revolução. Mas essa imagem é curiosa. Foi muito engraçado porque no final vemos que são muito parecidos. Tudo é tão diferente, mutável. Mas no México eu desencano de entender. Para que estruturar tudo o que somos? É melhor que a retórica não possa nos abarcar, nem a descrição cartesiana, melhor escapar à razão. Esse livro de Enrigue é uma boa chave. O que me alegra é que a minha geração tem a chance de participar de fóruns comuns como este Hay Festival, debater, conhecer-se, intercambiar; outros antes não tiveram essa oportunidade. Vamos ver aonde nos leva todo este rock and roll.
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