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Coluna
Artigos de opinião escritos ao estilo de seu autor. Estes textos se devem basear em fatos verificados e devem ser respeitosos para com as pessoas, embora suas ações se possam criticar. Todos os artigos de opinião escritos por indivíduos exteriores à equipe do EL PAÍS devem apresentar, junto com o nome do autor (independentemente do seu maior ou menor reconhecimento), um rodapé indicando o seu cargo, título académico, filiação política (caso exista) e ocupação principal, ou a ocupação relacionada com o tópico em questão

Voando pelos ares

Todo o meu ser vibrava no ritmo sincopado dos pneus deslizando pelos paralelepípedos irregulares.

Para Kledir Ramil, que tinha uma Göricke.

Na minha infância dizia-se que Cataguases tinha a maior ou pelo menos uma das maiores concentrações de bicicletas do Brasil. Nunca verifiquei a veracidade dessa informação, mas fato é que, às seis horas da manhã e às seis horas da tarde, elas inundavam as ruas cobertas por paralelepípedos e margeadas por árvores onde frutificavam passarinhos. Para singularizá-las, os proprietários e proprietárias (mais aqueles que essas) buscavam adornar seus “veículos de locomoção”: preenchiam os aros das rodas com cânulas de plástico coloridas, que, em movimento, além de formar desmaiados arco-íris, proporcionavam irritante barulho de chocalho; enfeitavam os punhos com rabiolas e os selins com franjas; penduravam espelhos retrovisores e bolsas para carregar bombas de ar para encher os pneus; e, os mais sofisticados, acoplavam um farol, alimentado por dínamos de fricção.

Meu desejo era crescer logo para ter a minha própria bicicleta e perambular pela cidade, derramando alegria dos bolsos. Enquanto isso não ocorria, ansiava pela chegada do fim de semana. No sábado, após deixar a fábrica, meu irmão entregava-me a sua Göricke verde e branca para lavar. Eu então iniciava um ritual. Tirava a corrente e mergulhava numa lata de querosene. Enchia um balde de água e polvilhava com sabão em pó. Mansas, as mãos esfregavam um pano encharcado em cada milímetro da ferragem, livrando-a de toda poeira que a maculara ao longo daqueles dias exaustivos. Repetia a operação até achar que ela encontrava-se de novo fresca e cheirosa. Depois, um pano seco percorria carinhoso o mesmo itinerário. Por fim, colocava de volta a corrente, lambuzando-a de graxa.

Terminado o serviço, exibia-a orgulhoso ao meu irmão, que mais tarde nela se deixaria conduzir aos braços da namorada. Em casa, aguardando o pagamento, a insônia incendiava meu corpo noturno. Dia seguinte, acordava ao primeiro galo, pegava a Göricke e, peito estufado de felicidade, dirigia-me à Praça da Estação para comprar o Jornal do Brasil e O Cataguases. Eu não pedalava uma bicicleta – eu me equilibrava sobre um tapete que voava por sobre os bairros operários, planava sobre o telhado das tecelagens, sumia entre as nuvens de que se nutria o tempo.

Ainda se falava do heróico feito de João do Pulo, ganhador da medalha de bronze de salto triplo nas Olimpíadas de Montreal, quando arrumei meu primeiro emprego de carteira-assinada, encaixotador no setor de algodão hidrófilo da Manufatora. Era agosto e para me deslocar entre minha casa, a fábrica e a escola, que freqüentava à noite, necessitava de uma bicicleta. Meu irmão conseguiu emprestado uma Philips preta com frisos dourados, freio contra-pedal, com um colega, Tainha, que encontrava-se encostado por causa de um problema na coluna - bico-de-papagaio, uma dessas doenças que, mudando de nome, mudou também de endereço. Eu a usei por três meses, o suficiente para juntar dinheiro para dar entrada na compra de uma zero quilômetro. Na loja do Ulisses escolhi, olhos de amante, a marca (Monark), a cor (laranja), o modelo (aro 26, barra reforçada) e a forma de pagamento (12 prestações fixas).

O sol de novembro castigava a cabeça dos munícipes cataguasenses, preocupados todos com a proximidade das eleições para vereador e com as enchentes que, como a morte, chegariam com o verão – todos estavam aflitos, menos eu. Meu corpo apropriara-se de tal maneira de minha bicicleta que meus olhos, meu nariz, minha boca, meus ouvidos, minha pele, todo o meu ser vibrava no ritmo sincopado dos pneus deslizando pelos paralelepípedos irregulares. Eu batia cartão contrariado por abandoná-la na rua, exposta às intempéries e aos olhares dos ímpios... Eu entrava na sala de aula apreensivo e me distraía querendo adivinhar como estaria ela naquele momento, sozinha no sereno da noite. Eu ia dormir e acordava sobressaltado, necessitando contemplá-la à luz da lua... Se o paraíso existe, eu estive acampado nele...

Durou pouco, no entanto, meu idílio.

O dia 23 de dezembro de 1976 caiu numa quinta-feira. Eu guardei minha bicicleta no pequeno galpão coberto de folhas de amianto, no quintal. À noite, ribombaram trovões, denunciando a tempestade. O calor e a umidade afugentavam os sonhos. Devia passar da meia-noite quando o vento, sacudindo os galhos das árvores, arrancou as mudas de roupas do varal, espalhou a poeira das ruas descalças. Ouvi estranhos barulhos, mas na escuridão tudo se move com demasiado desespero. Dia seguinte, acordei com minha mãe me convocando para o mingau de fubá com ovo, nosso café da manhã. Espreguicei, espiei pela janela e ela não estava lá. Por um momento, meu coração parou de bater. Meu pai perguntou o que havia acontecido, não respondi. Eu me tornara adulto.

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