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Como ler o espelho da alma

Cientistas de Ohio codificam as 21 feições que delatam a emoção humana O avanço enriquece a ciência do conhecimento e a visão dos robôs

Javier Sampedro

Os estudos de psicologia experimental e de visão artificial usaram até agora seis feições: felicidade, surpresa, raiva, tristeza, medo e nojo (alguns quiseram deixar em quatro, associando nojo e medo por um lado e felicidade e surpresa por outro). O novo trabalho da Universidade de Ohio expande o número para 21 expressões faciais decifrando uma espécie de gramática da expressão facial, com categorias compostas como felizmente surpreendido, ou tristemente temeroso. Depois de analisar o rosto de 230 indivíduos em todas essas atitudes, concluíram que cada uma implica em uma combinação distinta dos músculos do rosto, e que os sistemas de visão artificial (FACS, facial action coding system) reconhecem as seis expressões básicas com 87% de precisão, e as expressões compostas com 77%. Os resultados são importantes para a investigação do conhecimento humano, ou cognitivo, a neurologia e os sistemas de visão artificial, incluindo as próteses para cegos (e para que os robôs interpretem os gestos de seus interlocutores humanos, ou os reproduzam).

“Nosso trabalho introduz um tipo importante de categorias emocionais, chamado emoções compostas”, diz Aleix Martínez, coautor do estudo e cientista cognitivo dos departamentos de Engenharia de Computação e Ciências do Cérebro da Universidade Estatal de Ohio em Columbus. Estas categorias compostas estão formadas pela combinação de dois ou mais categorias básicas – ou cardinais- de respostas emocionais.

Por exemplo, a consternação pode ser entendida como o sentimento de nojo combinado com o de indignação, e assim os experimentos de Martínez e seus colegas demonstram: os indicadores faciais da consternação – como a abertura das pálpebras ou a curvatura da boca – são, nos sentimentos, uma combinação das feições do nojo e da raiva. O ódio é uma combinação dos mesmos componentes, embora desta vez com a ênfase colocada mais na raiva que na repugnância.

Os anteriores são casos em que uma só palavra contém a combinação de duas emoções básicas (ou cardinais). Muitas vezes, a feição combinada (ou a emoção composta) requer combinar também as palavras que designam às emoções elementares: felizmente surpreendido, tristemente surpreendido, enojadamente surpreendido, tristemente atemorizado, tristemente raivoso e assim até as 15 emoções compostas que, a partir de agora, terão que usadas pelos estudos cognitivos, os psicólogos e os robôs.

Felicidade, surpresa, raiva, tristeza, medo e nojo são as bases expressivas

“Os resultados”, diz Martínez, “indicam que o repertório de expressões faciais que os humanos tipicamente usam pode ser descrito melhor como um conjunto rico de categorias básicas e compostas que na forma de um pequeno grupo de elementos básicos”.

Há uma lei não escrita da ciência que se chama a navalha de Ockham. Embora sua formulação original pelo monge franciscano Guillermo de Ockham, uma das máximas do pensamento medieval, seja em extremo espessa e pesada, não se pode negar a seu conceito central uma claridade de uma índole quase brutal: a todo o resto igual, a explicação mais simples geralmente é a correta. Mas o reconhecimento dos rostos parece contradizer esse princípio, pois não se pode reduzir ao menor sistema possível de números primos emocionais – felicidade, surpresa, raiva, tristeza, medo e nojo-, mas que requer acrescentar a essa tabela periódica dos sentimentos toda uma série de emoções complexas.

Mas há um sentido em que 21 pode ser mais simples que 6: se os 21 gestos faciais complexos são meras combinações – ou melhor ainda, combinações gramaticais – das seis feições simples que foram utilizadas tradicionalmente, talvez todo nosso reconhecimento cerebral das emoções – ou, ao menos das emoções faciais – possa ser reduzido a um pequenos grupo de números primos da expressão facial, um acervo básico cujas combinações deem lugar a um caleidoscópio de gestos, piscadelas e mímicas que virtualmente expressem tudo. Igualmente a um alfabeto de apenas 30 figuras que pode gerar uma linguagem inteira, e a linguagem uma literatura e as literaturas uma história da literatura.

Então, há uma gramática do reconhecimento facial? Pode alguém combinar nojo e raiva para produzir ódio de um modo similar a como alguém combina um nome e um verbo para gerar uma frase que por sua vez pode se comportar como uma nova unidade grammatical?

A Monalisa expressa uma coisa com os olhos e outra com a boca

“Nossos resultados mostram que o ódio é produzido e reconhecido como uma categoria emocional independente da raiva e do nojo”, responde a este jornal o líder da investigação, o catalão Aleix Martínez. “Também mostram que tanto a raiva como o nojo são claramente visíveis na expressão facial do ódio; e embora sabemos agora que essas categorias emocionais estão representadas no cérebro, continuamos sem saber como são codificadas lá”.

Essa lacuna do conhecimento é uma das que a investigação atual está tratando de resolver. “Os resultados preliminares”, diz o investigador espanhol, “parecem indicar que algumas categorias emocionais são codificadas no cérebro como objetos independentes, enquanto outras podem ser interpretadas como elementos mais básicos”. Assim visto, o reconhecimento facial pode ser considerado uma gramática em alguns aspectos, mas não em todos. Em qualquer caso, isto é algo que seguramente pode ser atribuído também à gramática propriamente dita, a dos nomes, dos verbos e das orações compostas.

Os elementos do reconhecimento da emoção facial não são nomes e verbos, mas parâmetros como a forma dos lábios e o grau de abertura dos olhos. Cabe perguntar então quão longe estamos de explicar cientificamente o enigmático sorriso da Monalisa? Martínez responde:

“A Monalisa está expressando uma emoção feliz na região da boca, mas não com os olhos; um sorriso naturalista – ou um sorriso de Duchenne, como o chamam os cientistas cognitivos em referência ao estudioso do século XIX – implica a contração de um grupo de músculos que dão rugas nos cantos dos olhos, como ao entrefecharmo-los; também é necessário dizer que a expressão da Monalisa é muito assimétrica. A metade direita da imagem (a metade esquerda dela) está claramente feliz, mas não a metade esquerda (a direita dela)”.

“As expressões faciais naturalistas, e as que são usadas ao posar para a ocasião expressando alegria, são enfatizadas em outro lado, e isto cria uma estranha assimetria que não estamos acostumados a ver”.

Martínez estudou na Universidade Autônoma de Barcelona, e se especializou em Paris e Purdue (EUA). Formou-se em engenharia informática e foi se interessando progressivamente por ciências cognitivas. “Nas ciências cognitivas assumimos que o cérebro é um computador”, diz, “e nossa tarefa é decodificar os algoritmos que o cérebro usa nas tarefas diárias”.

Perceber se alguém se sente bem ou mal é talvez a principal de todas elas.

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