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Vincent Cassel: “No Brasil não existe cinismo”

O feio mais bonito do cinema europeu, que vai estrear a nova versão de “A Bela e a Fera” em maio nos cinemas brasileiros, fala de sua paixão pelo país

Álex Vicente
Belloso e Estevez

O feio mais bonito do cinema europeu atual estreia nova versão de “A Bela e a Fera”. Embora Vincent Cassel tenha jeito de bruto, confessa sentir-se como uma bela de peitos charmosos.

Vincent Cassel é testosterona adormecida. Ligeira ressaca em uma manhã de inverno. Olhos transparentes que sobressaem de uma face angular. Polidez perfeita, mas também uma ligeira amargura à flor da pele. Bate fortemente a mão na mesa e dá dois chutes no chão quando não se lembra de um nome. “Como se chama essa atriz que é como Robert De Niro, mas mulher?”. Meryl Streep? “Ela!”. Cassel é um corpo de um metro e oitenta e seis sentado em um sofá pequeno sobre o qual não vai parar de se mexer, oscilando entre três posições que alternará com certa metodologia: 1) apoiado sobre o encosto preguiçosamente; 2) com a coluna reta e uma perna dobrada sob a outra; e 3) apoiado sobre os braços do sofá enquanto gesticula com veemência com a mão que está livre.

O encontro acontece em um estúdio fotográfico do Canal Saint-Martin. O ator chegou atrasado apenas por uma questão de elegância, mas sem ser mal-educado. Lá fora, famílias jovens e decididamente tolas (os parisienses chamam assim sua tribo urbana por excelência, os bourgeois bohèmes) caminham sobre um passado de trabalho que já parece remoto, empurrando seus carrinhos de bebê entre livrarias de arte, lojas de design e garçons imbecis. Em uma calçada, um restaurante cambojano prepara as mesas para o almoço. Em frente, vendedoras lânguidas do American Apparel olham no vazio durante uma pausa para fumar.

Cassel nasceu a alguns bairros daqui, na colina que leva até Montmartre, mas já não parece pertencer a esta paisagem. Hoje, 48 anos depois, se assemelha mais a Thomas Leroy, o sofisticado e pérfido coreógrafo nova-iorquino do Cisne Negro, do que a Vinz, aquele menino judeu de um subúrbio pobre zangado com o mundo que ele estrelou em O Ódio, o filme (e fenômeno sociológico) que o catapultou à fama há quase vinte anos. Hoje ele vive no Brasil, longe desta cidade na qual já não se sente à vontade. “Não tenho nada contra a França, mas eu prefiro viver mais em um país novo do que em um velho. Quando fico aqui por muito tempo, sempre surge uma veia cínica”, confessa.

“No Brasil, no entanto, não existe o cinismo, que é uma atitude própria de pessoas velhas. Quando você já viveu tudo, você pode se dar ao luxo de ser cínico. Lá não são. Pelo menos de momento. De fato, talvez deveriam ser um pouco mais”. Ele diz que não comprou ingressos para a Copa do Mundo. “É justo o momento em que vou querer escapar de lá. O futebol não me interessa em nada”. Bem-vindos à França, esse país onde um homem heterossexual pode defender algo assim sem ser tratado como um elemento perigoso.

VENDER QUALQUER COISA MENOS A SI MESMO – O encontro não responde a um irrefreável desejo de discorrer sobre um sentimento de pertencimento nacional, mas sim à necessidade de promover seu último filme, uma nova adaptação de A Bela e a Fera, que entra em cartaz este mês. Cassel se esforça em mostrar sua melhor face, mas não esconde que esse exercício não lhe agrada demasiado. “Nunca falo com a imprensa se não tiver nada para vender”, diz pura e simplesmente. “Não gosto de contar o que almocei, nem onde passei minhas férias com a família”, acrescenta. Suas relações com a categoria foram tensas desde o início. Ele se converteu em bucha de canhão para os tabloides em 1999, quando casou com Monica Bellucci, mãe de suas duas filhas. Todo mundo que não passou os últimos seis meses sequestrado num porão sabe que eles acabam de se separar. Na França, o divórcio quase ganhou status de assunto de estado. Engolindo em seco, lhe fazemos uma dessas perguntas-que-não-interessam-a-ninguém.

Foi difícil se divorciar com a humanidade inteira observando o processo? “Há momentos em que eu preferiria que as pessoas se preocupassem com os seus problemas e não com os meus. Mas eu continuei vivendo a minha vida. É preciso dizer que alguns procuram isso, criando-se um personagem público e essas coisas. Mas acho que nós sempre nos esforçamos para não fazer isso. Só nos incomodavam na Itália, onde a imprensa é de uma vulgaridade absoluta. É uma coisa cultural. Mas pode ser que não seja pior do que em outros lugares. O jornalismo sensacionalista de celebridades é o MacDonald’s da informação. E hoje as pessoas consomem muito MacDonald’s porque é barato, se encontra em qualquer canto e, mesmo que seja feito de merda, se come facilmente. Com a informação acontece a mesma coisa”, sentencia. Vem-me à cabeça um recorte de jornal. Uma vez ele disse que tinha o saudável costume de jogar contra uma árvore qualquer paparazzi que se aproximasse dele. Melhor, então, mudarmos de assunto.

O PASSADO DA FERAA bela e a fera é kitsch sem complexo e recomendado para toda a família a serviço de uma fábula que pode parecer fora de época em tempos de rinoplastia para as massas e dos regimes Dukan generalizados. Mas, falando sério, não esqueçamos que a beleza está no interior. “Pois eu sou um dos que acreditam mesmo nisso”, responde Cassel. “Para mim, nos primeiros segundos já é possível saber se uma relação será duradoura ou não. Sentimo-nos atraídos pelo outro por razões obscuras, arcaicas. Fazemos uma leitura do outro que vai muito além do entendimento”. Poderia soar convincente se eu tivesse estado casado com Kathy Bates. Quando lhe propuseram o papel, dizem que “imediatamente” se viu representando-o. Sua companheira de elenco, Léa Seydoux – protagonista do novo esporte nacional francês – dizer que Adèle Exarchopoulos a comia com batatas em Azul é a cor mais quente – afirma que é porque possui “um lado animal muito acentuado”. O ator responde com certo orgulho, camuflado atrás de um meio sorriso. “Não serei eu que vai dizer o contrário. Prefiro que me tomem por um animal do que por soporífero. Reconheço que é uma imagem que trabalhei de forma consciente. Estudei o animal e o violento. Fazer o papel de príncipe encantado sempre me pareceu chato. Além disso, os personagens luminosos me custam. Nunca entendo o que querem da vida”, reconhece.

Basta uma repassada rápida na sua filmografia para perceber que, desde O Ódio, ele quase sempre fugiu da leveza. “Em parte o fiz para me distanciar do que o meu pai fazia”, acrescenta. Ele fala de Jean-Pierre Cassel, excelente ator e fabulista secundário, com frequência associado a uma imagem de dândi com pouco relevo e densidade. Com exceções significativas, como o diplomata que convidava ao deleite em O discreto charme da burguesia. No dia em que o jovem Cassel visitou o set de rodagem, Buñuel filmava uma cena de tortura. Diz que isso o marcou. “Mas agora já não penso assim”, esclarece. “Meu pai está morto, então já não preciso matá-lo. Esse pai o meteu num internato entre os sete e os 17 anos, enquanto sua mãe vivia em Nova York onde era redatora de gastronomia para a revista Elle. No fim da adolescência, largou os estudos e se dedicou exclusivamente a fazer cursos de dança e de circo. “Foi então que me tornei adulto porque tomei as rédeas do meu destino nas mãos. Eu ia para cima e para baixo de bicicleta, como nos filmes de Spike Lee. Me converti num legítimo parisiense: esnobe, mal humorado e agressivo, mas também culto e bon vivant”, afirma.

Saia muito e ia a ambientes muito diferentes, de clubes que acolhiam a crème de Paris do final dos oitenta -- Le Palace, Les Bains-Douches, Le Balajo -, pense num nome de uma casa noturna famosa dessa época e acertará – até os bairros degradados onde nasceu o hip hop francês. “Eu frequentava tanto designers homossexuais como personagens da banlieue (periferia) que, se podiam pagar um par de drinks a si mesmos, era só porque tinham roubado uma bolsa naquela tarde. Numa noite eu estava com Jean-Baptiste Mondino e, na seguinte, com fanáticos do Public Enemy. Tinha o melhor de cada mundo. Encadeava um show de um grupo vanguardista com um desfile de moda”. Fiz como se fosse contraditório: naquela época não existia Kanye West. “Embora eu não ligasse para a moda. Eu só queria ver as modelos”, reconhece.

Repassando imagens da época custa bastante acreditar que aquele rapaz não especialmente agraciado tenha acabado por se converter em sex symbol com rugas bem postas. Em seu rosto há algo indecifrável, juvenil e ao mesmo tempo senhorial, que o situa em algum ponto entre Samuel Beckett e Serge Gainsbourg, santo patrão do clube dos feios-bonitos franceses. Se lhe tivessem dito aos 20 anos que acabaria sendo imagem de Yves Saint Laurent, teria morrido de rir? “Não sei”, responde razoavelmente incomodado. “É verdade que nunca me considerei bonito. Sempre achei que eu tinha uma cara esquisita. Mas aprendi a me aceitar e a tirar partido do que sou. Em parte porque vi que até as pessoas mais bonitas do planeta costumam estar descontentes com seu rosto. Hoje sei muito bem o que eu tenho e o que não tenho. A pessoa tem que saber jogar com seus pontos fortes e fracos”. Cassel também leva fama de difícil. Uns dias antes, o diretor Christophe Gans – apesar de se definir como “um bom amigo seu” – o descrevia em termos pouco favoráveis: “Tem uma personalidade um pouco adolescente. Sua parte feminina está mais desenvolvida do que a masculina. Às vezes pode parecer muito diva.”

A Cassel lhe custa aceitar o retrato esboçado. “Ele lhe disse isso mesmo?”, se surpreende. “Eu concordo com tudo, menos com o negócio de ser diva. Não me considero um ator nada difícil, embora possa ser bastante passional no trabalho. Me dedico mais com a energia do que com a reflexão”. Ele reconhece que às vezes a coisa lhe escapa em direções que ele não gostaria. “Durante a rodagem me aconteceu uma vez. Eu disse ao técnico de efeitos especiais que tinha que aprender a fazer o seu trabalho. Nesses filmes com tantos efeitos, às vezes se esquecem dos atores. Eu lhe disse que se nós não estávamos bem, ninguém se importaria com seus efeitos”. Admite que se desculpou de imediato. E parece que fala sério.

Em outras de suas desventuras, o conflito durou bem mais. Por exemplo, na França é de domínio público que ele e Mathieu Kassovitz, o diretor de O Ódio, não se falam há anos. Ele nunca explicou porque e tampouco o fará agora, mas dá algumas pistas. “Quando nos disseram que éramos ícones geracionais, Mathieu acreditou. Ainda levará anos para superar isso, mas acabará voltando com um grande filme porque é um diretor brilhante”, concede. “Eu não acreditei. Decidi partir para longe, fazer outras coisas, me dedicar ao surf. Disse a mim mesmo que não queria que a minha vida fosse só o meu trabalho. Não queria chegar aos 50 com remorsos e me sentindo um imbecil”. Kassivitz continuou favorecendo seu fatigado registro de enfant terrible, que acabou ficando fora de época. Em 2012, quando a Academia francesa ignorou seu filme nas nominações dos César, reagiu assim: “Que o cinema francês vá tomar no cu. Que se fodam com seus filmes de merda”. Mas, num momento de autêntico gênio, depois retificou e se apresentou na cerimônia para entregar um prêmio. “Vim para honrar minha promessa”, disse. Cassel parece ter o mesmo nervo, mas sabe se comportar melhor em público. Diz que agora odeia os conflitos. “Tanto na vida como no trabalho só se deve sofrer quanto não resta nenhuma outra alternativa. Já estamos submetidos à decepção e ao sofrimento cada dia das nossas vidas. Melhor não procurar mais dor além da necessária. Agora não preciso repetir mil vezes para mim mesmo que minha mãe está morta antes de subir ao cenário”, diz. Metaforiza: sua mãe está viva.

O LADO FEMININO DAS COISAS – Como herança da sua juventude em Londres e Nova York, Cassel fala inglês quase sem sotaque – coisa pouco habitual entre os atores franceses, não é mesmo, Jean Dujardin? -- o que lhe permitiu conseguir espaço no cinema internacional. Por exemplo, ao lado de Steven Soderbergh, em Doze Homens e Outro Segredo – dez anos depois, ainda lhe perguntam se pratica capoeira – ou com seu admirado David Cronenberg, que o brindou com dois papéis que ocupam lugar de destaque entre os seus favoritos. Primeiro, o maravilhoso gangster criptogay en Senhores do Crime. E, depois, o psicoanalista Otto Gross de Um método perigoso, que seria tratado por Jung antes de traçar uma enfermeira e fugir do hospital.

Outra fonte de sabedoria foi aprender a não ter controle sobre todas as coisas imagináveis. “Antes eu queria controlar tudo. A maquiagem, o penteado, a cor da gravata. Agora sou todo ao contrário disso. Percebi que o instinto é a única coisa que conta”, afirma Cassel. “Por isso dizem que sou um tipo feminino. Considero um elogio. Dizem isso porque sei usar o meu instinto, porque minto bastante bem e porque tenho uns belos peitos”, sorri. De fato, as pessoas nunca acreditam nesses atores que fingem ser mais viris do que são. “No fundo, todos os atores somos atrizes”, ironiza. “Por isso também nos preocupamos com a passagem do tempo”. Entretanto, ele sabe que a sua carreira tem uma esperança de vida bem mais longa do que a de uma mulher da sua idade. “Entendo que sintam pânico. Há muito poucas que consigam trabalhar a vida toda, como Catherine Deneuve ou como essa outra. Sim, cara, essa atriz americana que tem tantos Oscars”. Por isso, ele tentava, há um momento, se lembrar do nome dessa atriz que “está incrível mesmo quando está gripada”, como diria Amy Poehler, que se chama Meryl Streep e que este ano, graças ao seu papel em Álbum de Família, foi nominada outra vez para os prêmios da Academia. “Para a maioria, chega um momento em que elas deixam de interessar, por critérios puramente plásticos. Que não nos aconteça aos homens é uma injustiça”. Apesar de tudo, uma vez mais, lembrem-se: a beleza está, definitivamente, no interior.

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