De Joseph Fouché a Sarney e Delfim Netto
Sarney foi um fidelíssimo servidor dos militares; Neto, tal como Fouché, recusa-se a cair em desgraça, equilibrando-se na crista da onda por qualquer preço
Traiu a Igreja onde se formou, traiu os revolucionários que acabaram com a monarquia, traiu os girondinos, os moderados, os jacobinos, os Iluministas, o Diretório, a República, os banqueiros que o financiaram e traiu Napoleão que lhe deu todos os poderes. Só não traiu a sua imensa, viciosa e desmedida ambição.
Joseph Fouché (1763-1820) entrou para a história como símbolo do político oportunista, pérfido, inescrupuloso, vil. Retratado por Heine, Balzac e, finalmente, por Stefan Zweig que o “traduziu” para o cenário e a gramática moderna e fez da sua esmerada biografia um libelo contra as falsificações ideológicas.
Envolvidos pela enxurrada de lembranças relacionadas com o cinquentenário da quartelada que derrubou João Goulart estamos demasiadamente presos à data-base - Março-Abril de 1964 – esquecidos dos 21 anos seguintes e da escalada de arbítrio e violência que desaguou na mais tenebrosa ditadura da nossa história.
O golpe desandou nas primeiras horas, a dinâmica do voluntarismo foi criando um encadeamento de fatos consumados que a alguns logo horrorizou e a outros – muitos - seduziu. Nesta sexta, o encanecido José Sarney declarou inocentemente que o erro foi deixar o poder político nas mãos dos militares. Com isso, o então deputado federal, integrante da “bossa nova”, a tropa de choque da anti-janguista UDN, imaginava livrar-se do pecado original – a derrubada de um presidente eleito.
A memória o traiu: ao longo, de pelo menos, década e meia, Sarney foi um fidelíssimo servidor dos militares que detinham integralmente o poder político. O famigerado “Pacote de Abril” (de 1977), que aferrolhou drasticamente o processo político foi defendido com veemência pelo senador Sarney, então líder, porta-voz e intérprete do governo. Os fados e o nosso infortúnio levaram-no à presidência da República, mas seu empenho e fidelidade como servidor da ditadura não foram casuais: em 1979, foi coroado como presidente da Arena, a fielv base de apoio dos militares.
Antonio Delfim Netto afirmou há dias que não se arrepende de coisa alguma. Tenta passar a impressão de que o seu longo reinado como czar da economia (em todos os governos militares, exceto o de Castelo Branco) envolveu apenas inocentes opções macro-econômicas. O poderoso chefão serviu-se fartamente do regime de exceção, dos salários arrochados, das greves proibidas, das lideranças sindicais exiladas, presas ou assassinadas. Abria as torneiras do crédito aos empresários amigos e fechava-as aos desafetos.
Não lembra ou não quer lembrar de que, junto com o despótico ministro da Justiça Gama e Silva, pressionou Costa e Silva a endurecer o regime seis meses antes do funesto AI-5 que abriu caminho para o amordaçamento efetivo da imprensa e para a selvageria dos militares da linha-dura.
Tal como Fouché recusa-se a cair em desgraça, equilibrando-se na crista da onda por qualquer preço. Como personificação do capitalismo de estado (de direita), conseguiu, a partir de 2002, engabelar os adeptos do capitalismo de estado de esquerda. O ministro da ditadura mais íntimo do empresariado da mídia durante a censura e a vexatória autocensura conseguiu encastelar-se como articulista em jornais e revistas ditos “progressistas”.
Mérito seu. Emitir opiniões não é crime, isso vale para Sarney, Delfim e todos os que não perceberam os malefícios do chumbo. Crime é esquecer, propagar fraudes. Consta que até as memórias de Fouché foram falsificadas.
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