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O Reino do Deserto aperta o punho repressor

A monarquia saudita impulsiona leis draconianas diante das manobras da Irmandade Muçulmana, o desafio terrorista e a reivindicação de direitos civis

Ángeles Espinosa (enviada especial)
O rei Abdullah, à esquerda, e seu irmão Nayef, seguram suas espadas em uma festa tradicional em 2010.
O rei Abdullah, à esquerda, e seu irmão Nayef, seguram suas espadas em uma festa tradicional em 2010.ap

Afirma um provérbio saudita que as nuvens passam. Talvez por isso a família dirigente da Arábia Saudita confiava em que a febre da primavera árabe se atenuasse. Mas o terremoto desatado pelas revoltas populares nos países vizinhos continua ocasionando réplicas, e as mudanças geopolíticas levaram a seus aliados, os Estados Unidos, a explorar uma aproximação com o Irã, seu principal rival na influência da zona. O Reino do Deserto está tentando recuperar a iniciativa com uma lei antiterrorista draconiana e uma política regional mais enérgica. Alguns sauditas veem tudo isso como uma mera manobra para calar o debate interno.

“É um novo ataque à democracia. Pela primeira vez se criminaliza aqueles que seguem correntes religiosas. Antes não estava permitido, mas também não era um delito”, denuncia Abdulaziz Algasim, um antigo juiz que é sócio de um escritório de advogados.

Entre os grupos incluídos no desenvolvimento da nova lei antiterrorista, está a Al Qaeda e suas franquias, como o Estado Islâmico no Iraque ou o Frente al Nusra, e a Irmandade Muçulmana. De forma significativa, o anúncio da lista foi feito apenas dois dias depois que a Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos e Bahrein retirassem seus embaixadores do Qatar, precisamente pelo apoio que este país oferece à confraria fundada há um século no Egito, mas com adeptos em todo mundo árabe.

Os responsáveis sauditas respondem assim às mudanças que estão sendo produzidas ao redor deles, interpretam fontes diplomáticas ocidentais. Por um lado, as revoltas árabes levaram à tona o desejo das pessoas de ter uma maior participação nos assuntos públicos, e a ascensão inicial da Irmandade Muçulmana fez os alarmes dispararem. Por outro, a resposta dos Estados Unidos e, principalmente, a abertura ao diálogo nuclear com o Irã criou um profundo mal-estar no reino.

“Sempre foi um estado policial. Mas agora mais”, resume uma ativista

Ambas as preocupações resultaram contraditórias na Síria. Diferentemente de sua posição no Egito ou Bahrein, a Arábia Saudita respaldou os rebeldes que lutam contra Bashar al-Assad, um aliado de Teerã. Seu esforço inclusive criou tensões com os Estados Unidos, a quem acusa de ignorar o grito de socorro dos civis sírios. Também, ao apoiar (ou ao menos fechar os olhos) o envio de homens e armas a essa guerra. O temor a que o regresso dos combatentes incentive o extremismo islamista no reino levou a enfatizar tal política.

“À primeira vista, a nova legislação responde os desafios exteriores, mas é dentro do país onde [as autoridades] enfrentam o maior deles”, defende Algasim. “É uma lei contra a gente silenciosa que simpatiza com a Irmandade Muçulmana", acrescenta, convencido de que a confraria “está muito estendida”. “Há 35 anos o regime religioso do Irã se converteu no primeiro inimigo da Arábia Saudita; nas duas últimas décadas, é a Irmandade, porque põem em dúvida a legitimidade da dinastia”, explica.

Segundo a leitura deste jurista, além dos grupos enumerados, o texto se refere de forma implícita a outros que considera contrários à família real, como o movimento pela monarquia constitucional, os liberais ou os reformistas. Human Rights Watch tacha a lei de “assalto às liberdades”.

“Há uma campanha em andamento contra o menor sinal de crítica”, coincide uma ativista dos direitos civis antes de enumerar vários condenados nos últimos dias pelos seus comentários no Twitter. “É aleatória, para exemplificar, embora tenha o efeito contrário”, aponta. Segundo ela, antes era permitido o debate entre os sauditas na Internet. “Agora as pessoas têm medo e passaram a usar fóruns privados”, acrescenta antes de mencionar um popular aplicativo de envio de mensagens instantâneas que codifica as mensagens e permite destrui-las.

A ONG Human Rights Watch risca a lei de “assalto às liberdades”

“Sempre foi um Estado policial, mas agora mais. A tolerância foi reduzida porque a família real está ocupada com o xadrez da sucessão”, interpreta.

O rei Abdalá ronda os 90 anos e seu herdeiro tem 78. O grande desafio pendente é o salto geracional dos filhos do fundador do reino a seus netos. Embora haja total opacidade sobre o que acontece no palácio, os observadores falam de uma luta entre os diferentes ramos familiares por colocar um dos seus à frente do maior exportador de petróleo do mundo.

Enquanto isso, a corrupção come boa parte dos enormes investimentos com os que a família real tenta suprir na educação, emprego e serviços de uma população que vai dobrar nos próximos 20 anos. E os sauditas viajam a países vizinhos como Emirados, Qatar e Turquia, com os que inevitavelmente se comparam.

“É claro que sabemos o que acontece, que este ou aquele príncipe ficou com esta terra ou tem o monopólio daquele negócio; estamos a par da corrupção. Mas o que podemos fazer?”, me responde um colega jornalista quando lhe pergunto pela força das ruas.

“A sociedade está mudando”, opina Eman al-Nafjan, uma proeminente blogueira que foi presa em três ocasiões por acompanhar e documentar as mulheres que desafiam a proibição de dirigir. “Passei horas na rua com elas e vejo que a reação da maioria é positiva, no mínimo, não lhes incomoda. Inclusive alguns dos policiais que nos pararam mostrou sua simpatia pessoal”.

Outros não têm isso tão claro. “Os sauditas vivem muito cômodos para se arriscarem a fazer qualquer coisa”, afirma uma estrangeira com várias décadas de residência no país. As palavras de um servidor público parecem confirmar sua impressão. “Vimos o que aconteceu fora e não queremos algo assim. Olhe o Iraque, o Egito ou a Síria. Estão pior que nós”, manifesta.

“Aqueles que estão dispostos a atuar são ainda uma minoria”, admite Al Nafjan, “mas mudou a forma com que a sociedade os percebe. Antes, a maioria estava contra, agora muitos são indiferentes ou inclusive simpatizam. E a divisão já não é entre liberais e islamistas, mas crescentemente entre povo e Governo”. Algumas nuvens não passam até que descarregam a água que levam.

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