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Rússia acelera a anexação da Crimeia

O Parlamento da península declara a independência depois de consulta popular Putin dita um decreto no qual reconhece o território como um Estado soberano

Pilar Bonet
Um oficial ucraniano fala a um grupo de recrutas, perto de Kiev.
Um oficial ucraniano fala a um grupo de recrutas, perto de Kiev.A. S. (AFP)

A Rússia e a Crimeia se apressam a colocar em prática e consolidar os resultados do plebiscito do domingo no qual, segundo as autoridades desta península do mar Negro, os crimeios de forma quase unânime expressaram sua vontade de se integrar a Moscou frente a um insignificante número de partidários que optaram por seguir na Ucrânia com atribuições ampliadas. O Parlamento da península, em uma sessão extraordinária com portões fechados, votou na segunda-feira uma declaração de independência efetiva e facultou ao primeiro-ministro, Serguei Axionov, e ao chefe do Legislativo, Vladimir Konstantinov, para ir a Moscou para assinar um tratado bilateral com a Rússia no qual selará a anexação.

Baseando-se no resultado oficial do referendo, em Moscou o presidente Vladimir Putin promulgou um decreto no qual reconhece a Crimeia como um Estado soberano.

A hora de Kiev será substituída pela hora de Moscou a partir do dia 30

O decreto divulgado na página de internet do Kremlin é um passo prévio à sessão conjunta extraordinária das duas câmaras do Legislativo russo (Duma e o Conselho da Federação) que se realizará na terça-feira na presença da delegação da Crimeia encabeçada por Axionov e Konstantinov. Putin tomará a palavra para explicar sua já clara posição sobre a Crimeia.

De acordo com as leis internacionais, a Crimeia é uma república autônoma da Ucrânia e o referendo de domingo só é reconhecido pela Rússia. Resultado das turbulências provocadas pelos protestos de Kiev, a consulta foi preparada no prazo recorde de dez dias e realizada em um meio militarizado e majoritariamente controlado pelos oficiais russos. Os resultados proclamados suscitam sérias dúvidas, inclusive entre os convencidos de que a opção russa (deixando de lado a legalidade ucraniana) teria maioria na Crimeia se pudesse ser formulada em condições mais sossegadas.

A comunidade tártara, que constitui cerca de 13% da população, tinha se pronunciado majoritariamente em favor do boicote; os ucranianos, que são cerca de 24%, estavam divididos, e unidades militares ucranianas bloqueadas pelos russos não puderam e também não quiseram votar. Além disso, houve irregularidades patentes tais como a possibilidade de votar apenas indo a um colégio e solicitar a inclusão na lista de eleitores.

Pela incorporação à Rússia votaram 96,77% dos crimeios (1.233.002 pessoas), e a favor da Ucrânia, 2,51% (31.000 pessoas), segundo o presidente da comissão do referendo, que informou sobre o resultado oficial ao Parlamento. Votariam no referendo 83,1% do censo (1.274.096 pessoas) e 9.097 cédulas seriam declaradas nulas.

Nesta segunda-feira, a Crimeia mergulhou em um novo mundo. Em Simferopol, militares equipados como para uma operação de guerra e sem identificação bloqueavam as ruas que cercam o Parlamento, em cujo interior os dirigentes secessionistas tentavam formalizar a nova realidade. Até o domingo, a sede do Legislativo tinha ficado sob vigilância de uniformizados heterogêneos e exóticos, que incluíam milicianos, cossacos, membros da dissolvida Berkut (forças de intervenção especial ucranianas) e um número não determinado de militares russos. Na segunda-feira, a vigilância estava sob responsabilidade de um único e bem equipado comando de operações especiais.

Os parlamentares se dedicaram a desmontar a legalidade ucraniana na Crimeia para começar a construir o seu próprio projeto. Pela “declaração de independência” da Crimeia votaram 85 deputados (de um total de cem da câmara). A “República Autônoma da Crimea” foi substituída por “República da Crimeia”. A hora de Kiev será substituída no local pela hora de Moscou a partir de 30 de março. O Soviet Supremo ou a Rada da Crimeia será o Conselho de Estado ou Parlamento. A moeda ucraniana será substituída pelo rublo, embora de forma paulatina e com um prazo de circulação até janeiro de 2016.

A declaração prevê um status especial para a base naval de Sebastopol

Em uma disposição econômica, o Parlamento determinou as bases de funcionamento do sistema de finanças local. O “Banco da Crimeia” assegurará a circulação monetária e o funcionamento do sistema financeiro e se ocupará da substituição pelo rublo. O Ministério das Finanças da república passa a controlar as delegações na Crimeia do Tesouro, do Ministério de Impostos e da Inspeção das Finanças. Em 2014, o sistema de pagamentos de pensões, salários e serviços sociais seguirá funcionando como na Ucrânia, mas o Conselho de Ministros pediu ajuda financeira à Rússia. Assistiram à sessão vários deputados da Duma russa e o cônsul desse país em Simferopol.

Em sua declaração de independência, a república da Crimeia dirigiu-se à ONU e a todos os países do mundo para pedir que a reconheçam como um Estado independente, fundado pelos povos crimeios. A declaração prevê um status especial para a cidade de Sebastopol, que na União Soviética se submetia diretamente a Moscou, e na Ucrânia, a Kiev. Também se aboliu a legislação e os símbolos do Estado ucraniano. A propriedade estatal da Ucrânia na península passa a ser propriedade da Crimeia.

A declaração pede que a Crimeia seja incluída na Rússia como um ente da federação “com o status de república”. A precisão é uma novidade para evitar que a Crimeia se torne uma simples província russa e assegurar a categoria de territórios como o Daguestão ou o Tartaristão, que no passado tinham mais direitos que as províncias e regiões, mas que atualmente mantêm apenas diferenças simbólicas e cerimoniais em relação às outras unidades territoriais da Rússia, que tem um total de 84.

Em relação aos militares ucranianos na Crimeia, Konstantinov disse que não perseguiria aqueles que “por suas convicções não aceitam a independência da Crimeia e continuam fiéis ao Estado ucraniano”. “Aos militares das forças armadas da Ucrânia se dão as alternativas de realizar o seu serviço na Crimeia, jurando lealdade à república, ou de dar prosseguimento fora da península, no enquadramento do exército ucraniano”, assinalou, acrescentando que esse princípio será aplicado aos servidores públicos estatais e dos corpos armados que juraram lealdade à Ucrânia. “Ninguém será obrigado a prestar juramento”, manifestou Konstantinov, segundo o qual no referendo “não se votou contra a Ucrânia e os ucranianos", mas que "se o regime que tomou o poder em Kiev ameaçar a república e tentar chantageá-la, os crimeios saberão se defender e há de lembrar que por trás de nós está a Rússia, que não deixa os seus abandonados”. Segundo o serviço de imprensa do Parlamento, Konstantinov afirmou que se criará um “ponto de entrega dos símbolos do estado ucraniano” e que “as autoridades da Crimeia os tratarão com delicadeza”.

Konstantinov deu “garantias” aos que têm propriedades privadas de que poderão conservá-las se estas “foram adquiridas de modo legal”. Afirmou que as autoridades da república “farão tudo" para que a incorporação da Crimeia à Federação Russa não prejudique os interesses de ninguém e seja “a mais cômoda possível” para todos os crimeios.

Os dirigentes russos, começando por Vladimir Putin, estão exaltando os ânimos separatistas no mundo. No entanto, no que se refere a seu próprio território atuam com critérios diametralmente opostos. Em 9 de maio entram em vigor as alterações legais no código penal que preveem punições para a propaganda do separatismo. O documento foi apresentado na Duma pelos comunistas e assinado pelo presidente russo em 28 de dezembro. O teor da nova legislação prevê multas, trabalhos forçados de até trezentas horas ou privação de liberdade de até três anos. Se essas exortações dirigidas contra a integridade territorial forem realizadas com a ajuda dos meios de comunicação, o castigo pode ser de até cinco anos de privação de liberdade.

A delegação oficial da Crimeia se encaminhou nesta segunda-feira a Moscou. Um dos membros da equipe que preferiu ficar em Simferopol afirmou que há de se estudar bem as condições do que está sendo assinado. “Não teríamos de perder todo o lado bom acumulado como parte da Ucrânia nestes 23 anos desde que a URSS se desintegrou”, completou. Privadamente, diplomatas ocidentais davam por perdida a península, para além de contar que esse território paradisíaco pode se converter em um tema global permanente por muitos anos nas relações entre a Rússia e o Ocidente. Isso, no melhor dos casos, porque existe ainda o risco de que haja derramamento de sangue, seja por uma provocação, seja porque alguns dos ucranianos assediados nas unidades militares decida enfrentar os russos por uma questão de patriotismo. O derramamento de sangue colocaria em funcionamento outra lógica na qual já não seria possível falar de “irmãos eslavos”.

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