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"Para a derrota, ninguém se prepara"

Vicente del Bosque é sereno e contido. Um homem com os pés no chão, que viveu o futebol com paixão. Trinta e sete anos no Real Madrid como jogador e depois como treinador fazem parte da sua história Agora, para a maioria, é presidente da Espanha, uma equipe de futebol que com ele chegou, pela primeira vez, a ser campeã do mundo

Juan Cruz
O treinador Vicente del Bosque.
O treinador Vicente del Bosque.SOFÍA MORO

É legítimo se perguntar o que teria sido deste grande homem (nele, tudo é grande, as mãos, o rosto, o corpo, os trajes) se ele não tivesse sido abençoado pela paixão e pelo sucesso. Sua vocação foi o futebol, sua sorte foi cair no Madrid quando era criança, e sua aventura foi a equipe branca, e tão feliz foi sua trajetória que acabou tornando-se treinador.

Essa felicidade terminou bruscamente quando, na primeira era de Florentino Pérez como presidente, este julgou necessário tirá-lo do banco de reservas porque preferia mais glamour nessa zona do clube branco. Se a natureza do futebol não fosse tão volátil, essa humilhação (porque não há nada pior que não ser amado pelos seus) o teria acompanhado para sempre.

No entanto, pouco a pouco, como caminhava Pablo Neruda, indo de um lado a outro do seu corpo, consertou o que estava quebrado e em um belo dia transformou a seleção espanhola de futebol em campeã do mundo.

Como se essa flor fugisse do outono, logo renovou o título europeu que o agora já falecido Luis Aragonés havia ganhado com a mesma luta, e este homem de mãos grandes e olhos que avermelham de emoção ou raiva é um herói nacional.

Talvez seja essa trajetória, que diz tanto sobre a voluptuosidade da vida, foi o que colocou seus enormes pés no chão. Não crê que seja tão bom quanto dizem, nem que tudo se deve a ele. "É que os jogadores contam muito, e os que eu tenho são extraordinários". Porém, o que teria sido sem esses êxitos? "Não sei, quem sabe o que poderia ter sido. Mas eu sou Vicente, Vicente del Bosque; e quando deixar isso, serei o que sou, Vicente del Bosque". Agora, também é marquês. "Mas sou Vicente, acima das honras. Honra é algo que você tem sem que precisem te dar".

Agora, tem um novo desafio pela frente. Com a roupa de receber visitas, mais sorridente que no banco de resevas, onde domina seus nervos golpeando as coxas com os punhos, refere-se à ela, a Copa do Mundo do Brasil, com pose de maestro.

- Sobre o que é mais otimista, a recuperação desse país ou o Mundial?

Somos muito bons, temos um estilo de jogo muito reconhecido, temos ideia do que temos que fazer. Então, o que precisamos fazer para sair à frente é sermos modestos”

- Sobre o Mundial. Em cinco meses, acabará a dúvida. Quanto à recuperação do país, o processo será mais longo, mas saíremos. No Mundial de futebol, perdem 31 e apenas um vai ganhar, de todos os 32. Gostaria que quando tudo terminasse, os espanhóis dissessem: "temos uns rapazes que deram de tudo, que foram bem, que nos representaram bem".

- Talvez você tenha que preparar as pessoas para a derrota...

- Ninguém se prepara para a derrota.

- Rudyard Kpling dizia que a vitória e a derrota são dois impostores que precisam ser enfrentados com o mesmo espírito. Veja o que aconteceu antes dos Jogos Olímpicos, quando pensávamos que éramos os reis do mundo e fomos derrubados pela realidade. Talvez agora os espanhóis, acostumados a tantas vitórias futebolísticas, tenham na cabeça como o Mundial é imprevisível.

- Sou muito realista quando falo do Mundial, e esse exemplo dos Jogos Olímpicos, precisamente, sempre me deu medo. Nunca deu certo tanto otimismo. Não seria bom que passássemos pelo que passou a França na Coreia, que era favorita e você viu o que aconteceu..., ou o que aconteceu com a Itália, na África do Sul, quando era campeã e não passou da primeira fase...É para isso que precisamos nos preparar, para não cair nesse erro.

Talvez porque experimentou derrota (aquela expulsão do Madrid não será apagada da alma, não pode ser), alerta contra a moral da vitória, que a imprensa e os torcedores também respiram. O impostor do êxito, sobre o qual falava Kipling em seu famoso poema If, fornece material para expressar seu estado de alerta. "Somos muito bons, temos um estilo de jogo muito reconhecido, temos ideia do que temos que fazer. Então, o que precisamos fazer para sair à frente é sermos modestos, sensatos, não sermos fantasmas, e não pensarmos que somos a hóstia. Isso nunca: não somos fantasmas, não somos a hóstia. Somos normais, não somos outra coisa".

A vida colocou os seus pés no chão, não só porque pisa agora depois do triunfo, mas porque lhe deu algumas advertências. É filho de um ferroviário, que o seguiu com devoção desde que disse, ainda criança, que seria um jogador de futebol, e ainda que tenha ar de maestro de escola republicana, é um saco de nervos. Desde que chegou à capital de Salamanca, com 17 anos, acompanhado do pai e do irmão Rafael, esteve 36 anos no mesmo clube. "Como não me afetaria deixá-lo...". Logo veio seu trabalho como treinador na Turquía, uma espécie de exílio para sua melancolia, ainda que o julgue "uma experiência fantástica e enriquecedora que vivi durante 10 meses", e chegar à seleção... A mesma vida proporcionou "o nascimento do meu filho Alvarete", que é, para ele e para sua família, "uma benção". Mas essa mesma vida "me obrigou a passar pelo momento mais amargo, a morte do meu irmão Rafael, aos 47 anos, vencido por um câncer".

Del Bosque no salão de sua casa.
Del Bosque no salão de sua casa.SOFÍA MORO

No Real, conta, ganhou cinco Ligas como jogador, duas como treinador, cinco Copas (do Rei), duas Ligas dos Campeões. "Eu me sinto muito sortudo". Ele diz que relativizou muitos dos êxitos, "porque sei que sou apenas um treinador. Como jogador, no Real, era parte de um grupo acostumado a ganhar e que sentia muito as derrotas. De todas as formas, fomos afortunados. No profissional, consegui coisas impensáveis e me sinto orgulhoso da minha paixão, que é o futebol, de poder ter conquistado um Mundial e de ter ganhado o Campeonato Europeu".

Há uma luz nesse homem, seu filho Álvaro. "Amo esse rapaz...se existe a palavra amor, aqui está. É o que sentimos por Álvaro. Não digo nunca 'te amo', é difícil que eu diga, mas, para ele, digo muitas vezes: 'Álvaro, eu te amo'. Digo muitas vezes".

Nesta manhã em que estivemos juntos, falando sobre o sucesso e o outro lado, Vicente del Bosque havia levado Álvaro ao trabalho, uma empresa da ONCE (Organização Nacional dos Cegos da Espanha). "Formou-se como auxiliar administrativo e separa correio, escaneia documentos e os leva; estamos encantados". Sua mãe queria que fosse de gravata no primeiro dia; Vicente usa a gravata como parte do uniforme, mas como se pode imaginar, andando entre os jogadores, caminhando como Neruda, durante os treinos.

- Sim, claro que me emociono falando sobre Álvaro.

- Você é homem muito emotivo.

 - Sim. Pareço frio, mas claro que sou.

Álvaro nasceu quando Vicente estava treinando o Castilla, filial do Real Madrid, há 24 anos. "Nós nos fizemos três perguntas quando descobrimos que ele havia nascido com síndrome de Down. 'Por que isso aconteceu conosco' foi a primeira pergunta. Depois de uma semana, nos perguntamos: 'Por que não aconteceria conosco?' E desde então nos perguntamos o que teria sido de nossas vidas sem Álvaro".

Dizem que tenho rancor. Não, não é isso. Tenho dor. Nem em meus piores sonhos esperava que fosse sair do Real Madrid como saí”

São perguntas didáticas, disse Vicente, "para alguém que, de supetão, recebe essa notícia; parece que é muito duro, mas logo você percebe que não é. É uma aventura feliz viver com Álvaro. Agora, vou jogar com ele aos sábados e aos domingos na Comunidade de Madri e convivo com outros rapazes com o mesmo problema, vejo que tenho uma obrigação com eles".

Del Bosque parece sereno. Em seus olhos vê-se o ruído do que está por dentro, como uma catarata de sentimentos, que talvez tenham sido postos no lugar por Álvaro e pela experiência da vida. Nessa catarata está, claro, sua saída do Real Madrid. "Fui fiel à empresa por 36 anos e até o último dia. Um bom empregado é aquele que crê que a empresa não funciona sem ele, que se considera muito importante. Mas no fundo sabe que, quando não estiver, virá outro para fazer melhor, mas certamente eu considerava o Real algo meu. Qualquer coisa que afetasse o Real, me afetaria também. Era minha vida".

- De modo que quando o demitem, depois de uma boa campanha...

- Doeu. Dizem que tenho rancor. Não, não é isso. Tenho dor. Nem em meus piores sonhos esperava que fosse sair do clube como saí.

Uma dor. Logo, viu outras circunstâncias inesperadas caírem sobre sua história como metáforas. A campanha contra Iker Casillas, que já se amenizou; a incompreensão sobre o esforço da família de Guti, "que vinha todos os dias de ônibus de Torrejón para que o garoto treinasse", ou o esforço da própria família de Iker para que seu filho fosse quem é hoje. Essas lembranças fazem parte do seu saco de melancolias, e ele as supera como aquele poema de Kipling diz que se deve vencer as armadilhas do fracasso e da fama. "Nada mudou, acho, sempre procuro responder à simpatia que as pessoas demonstram". E em casa, tiram-no da nuvem? "Não, ali é como sempre foi".

- E o que Álvaro diz de seus êxitos?

- Ele é o que pensa mais do seu pai, eu acho. Nos outros, passa rápido; seguramente, dentro da sua inocência, crê que o pai conseguiu algo grande. Eu tenho minhas dúvidas.

Olhe para trás, Del Bosque. Aquela família humilde que passou pelo trauma da guerra e da ditadura prepararam-no para o que está acontecendo agora? "Nos momentos de dificuldade, o que vejo é que fomos capazes de sair de tempos piores. Creio que a maior parte de nós é tolerante, e essa tolerância (a palavra mais bonita que existe) nos ajudará a construir uma Espanha melhor. Superamos esse momento, não somos um país isolado. Estamos dentro da política europeia. Já passou o tempo de viver com rancor pelos outros. E é bom se lembrar disso para que não volte a ocorrer".

Na seleção, há galegos, canários, catalães, andaluzes. Alguma vez, de brincadeira, disseram que ele deveria ser presidente de uma hipotética república espanhola. A verdade é que o marquês Del Bosque é presidente da Espanha, uma equipe de futebol pela qual é muito apaixonado, e especialmente pelo seu filho Álvaro del Bosque, um garoto de 24 anos que trabalha em uma empresa da ONCE que se chama Alentis.

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