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A versão mais forte?

As grandes assessorias de imprensa no Brasil têm mais que o dobro do tamanho das redações, detêm a informação e, muitas vezes, bloqueiam o acesso a ela

Marina Rossi

Em 1914, há exatos cem anos, o poeta e jornalista Emílio de Meneses, eleito para ser um dos 40 imortais, como são chamados os ocupantes de uma cadeira na Academia Brasileira de Letras (ABL), não pôde tomar posse. Seu discurso havia sido censurado, como contou o antropólogo Darcy Ribeiro (1922-1997) no livro Aos trancos e barrancos – como o Brasil deu no que deu. Escreveu Ribeiro: “O discurso ofendeu a casa”. Com um pedido da ABL para que Meneses fizesse algumas emendas em seu discurso, o poeta morreu, quatro anos mais tarde, sem tomar posse na Academia. O caso provavelmente não teria acontecido dessa maneira se Meneses tivesse, naquela época, um assessor de imprensa para ajudá-lo a tornar o seu discurso mais coerente com as normas da casa.

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Embora as assessorias de imprensa tenham começado a surgir no Brasil somente na década de 1950, como conta Manuel Carlos Chaparro, doutor em Ciência da Comunicação, jornalista e professor da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo e um dos precursores da comunicação empresarial no país, foi junto com as assessorias que as informações passaram a ter uma espécie de filtro, capaz de ajudar as empresas e políticos, mas, ao mesmo tempo – e esse é o problema - bloquear o acesso público a algumas informações.

A tentativa de controlar a informação, embora negada pelas agências, é comum no dia a dia das redações. Enquanto esta matéria estava sendo produzida, a reportagem do EL PAÍS foi interrogada pela agência CDN, uma das gigantes do setor, sobre em qual editoria a reportagem seria publicada, em qual data, com quais outras pessoas a reportagem estava falando e até mesmo o nome da chefia de reportagem e – vejam só – “quem havia sugerido a pauta”. Esses são cuidados necessários ou trata-se de uma tentativa de intimidar o jornalista antes mesmo de a entrevista ser agendada?

“Fazemos isso para que possamos esclarecer o nosso cliente da melhor forma possível. Queremos entender o contexto da reportagem”, diz João Rodarte, presidente da CDN, que hoje emprega 400 pessoas e fatura 88 milhões de reais ao ano. Nesse caso, o cliente era ele mesmo, que concedeu uma entrevista por telefone ao EL PAÍS. Para Rodarte, a questão da isenção é muito clara para o jornalista, mas a coisa muda de cenário quando se trata de profissionais da assessoria de imprensa. “Aqui, nós trabalhamos para o cliente. Não somos isentos. Nosso papel é o de mostrar o nosso cliente e assegurar que ele tenha um posicionamento equilibrado e correto na imprensa”, diz. “O jornalista, quando está na redação, tem um código de ética. Mas quando ele vem para as agências, ele é um profissional da comunicação, não é um jornalista mais”.

Hoje, milhares de pessoas fazem esse trabalho de filtragem. Uma outra grande agência de relações públicas e assessoria de imprensa, a FSB, chega a empregar, sozinha, 650 funcionários e a faturar 145 milhões de reais. Para se ter uma ideia, o jornal O Estado de S. Paulo, fundado em 1875, tem 282 jornalistas, segundo o departamento de recursos humanos. A Folha de São Paulo, jornal de maior circulação no país, de acordo com a Associação Nacional de Jornais, emprega 400 pessoas, nas duas publicações do Grupo - Folha e Agora – como relatou Sérgio Dávila, editor-executivo da Folha.

Se a quantidade de assessores é muito maior que a de jornalistas, a informação corre então o risco de pender para o lado mais forte? “No mínimo, os assessores conseguem um espaço para colocar seus clientes e, no máximo, eles conseguem distorcer a informação”, diz o jornalista Mario Sergio Conti, ex-diretor de redação da revista Veja e atual colunista dos jornais Folha de São Paulo e O Globo. Conti escreveu também o livro Notícias do Planalto (Companhia das Letras), sobre os bastidores do impeachment do ex-presidente Fernando Collor. “Os assessores estão lá para colocar a versão do cliente, ou batalhar para que não seja publicada a versão de uma história que ele não queira, e até mesmo para bloquear algo que ele não queira que seja publicado”, diz.

Tanto quanto filtrar a informação, o que as assessorias fazem é oferecer suas notícias insistentemente para os jornalistas. Diariamente, centenas de sugestões de reportagens chegam às redações. “Isso compromete a notícia, porque ela deixa de ser uma busca do veículo de imprensa, para ser uma necessidade de uma fonte de vender os seus interesses”, afirma o jornalista Alberto Dines, que em seus mais de sessenta anos de carreira, lançou diversas revistas e jornais no Brasil e em Portugal e hoje dirige o site de crítica da mídia O Observatório da Imprensa. Para Chaparro, da USP, a situação pode ser olhada de outra maneira: “Existe uma crise, porque a notícia não nasce mais de dentro das redações. Mas, será que é melhor um mundo onde só os jornalistas possam falar, invés de um lugar em que todos falem?”.

Se, por um lado, as agências têm muita abrangência, por outro, muitas redações parecem acomodadas com a situação, segundo Conti. “Claro que existe preguiça por parte dos jornalistas da redação”, afirma. Um caso que ilustra a fragilidade das redações diante das sugestões que vêm de fora, ocorreu no Brasil em 2006, quando o consultor de RH Ary Itnem surgiu na Avenida Paulista com um cartaz pedindo “um abraço”. Sua “teoria do abraço” dizia que era possível combater o mal estar corporativo com abraços, uma ideia desenvolvida pela “Confraria Britânica do Abraço Corporativo”. Itnem virou notícia em diversos veículos. Foi entrevistado por jornalistas renomados como Heródoto Barbeiro, na rádio CBN, e Gilberto Dimenstein, na Folha de S. Paulo.

Revelou-se, depois, que Ary Itnem nunca existiu. A grafia de seu nome (a palavra "mentira" ao contrário), seu personagem e sua teoria, foram inventados pelo jornalista Ricardo Kauffman, que transformou a história no documentário “O abraço corporativo” (2010). Ele mostra como poucas pessoas e pouco tempo para apuração em uma redação deixam qualquer veículo de imprensa suscetível a erros que podem ser graves, como o de publicar como verdadeira uma história que não existe. “A quantidade absurda de assessores em relação aos repórteres, o fato de os jornalistas saírem das redações em busca de salários melhores, isso tudo enfraquece o jornalismo”, diz Chaparro.

As previsões sobre o futuro sugerem que a demografia dessa relação deve continuar favorável às assessorias no embate com as redações. De acordo com o Ministério do Trabalho, existem hoje cerca de 145 mil jornalistas registrados. Um levantamento feito por um núcleo de pesquisa da Universidade de Santa Catarina (UFSC) em parceria com a Federação Nacional dos Jornalistas (FENAJ), mostra que, a cada dez jornalistas, um é professor, quatro trabalham fora da imprensa e cinco ainda estão empregados na mídia. Mas o professor Samuel Lima, um dos responsáveis pelo estudo, afirma que esses dados estão mudando. “Há uma tendência de que, na nossa próxima pesquisa, que sai em 2017, encontremos mais profissionais atuando fora da mídia”.

Para Dines, essa balança desequilibrada desfavorece a sociedade. “A sociedade é quem mais perde, porque a imprensa não está enriquecendo o debate”, diz. Conti, por sua vez, acha que as assessorias vão continuar crescendo: “Hoje você não consegue falar com um cantor, por exemplo, sem antes ter que falar com meia dúzia de gente. Isso é um absurdo. Antes, a única coisa que você tinha que fazer, era ligar para as secretárias das fontes. Eu costumava ficar amigo das secretárias. Hoje não adianta mais”. Ainda que as perspectivas não sejam as melhores, ele é otimista. “Os dinossauros foram extintos, mas as baratas sobreviveram. Eu espero que o jornalista seja uma barata”.

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