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Não são pobres, são os excluídos da festa

Os pobres são, talvez, os mais interessados em que não os chamemos mais como tal. Deveríamos chamá-los de excluídos da cultura e do consumo.

Juan Arias

Deveríamos deixar de chamar os pobres assim. Não são pobres, no sentido etimológico latino que manteve o poder, ou seja, os “estéreis”. Ao contrário, eles são os excluídos da festa, os sem oportunidades de serem como nós.

Deveríamos abolir da nossa língua a palavra “pobre”? O tema é delicado e poderia ser mal interpretado. No entanto, os pobres são, talvez, os mais interessados em que não os chamemos mais como tal. Deveríamos chamá-los de excluídos da cultura e do consumo.

Como muitas outras palavras no dicionário, a palavra “pobre” perdeu sua força e é usada e abusada hoje pelo poder. É um vocábulo gasto, batido, explorado, mas que rende benefícios, por exemplo, eleitorais.

Quem seriam os pobres de verdade hoje?

Quem interessa que continue havendo pobres, contentes com os restos de nosso banquete, é o poder, porque ele não existiria se não houvesse aqueles que poderiam ser dominados e servidos por ele.

Querem pobres, mas não rebeldes, e que então são chamados de vândalos.

O que seria dos governantes, especialmente em países com massas deserdadas, sem os pobres? Eles são um material de primeira para garantir o seu apoio e carinho. Quanto mais populistas os governantes são, mas enchem a boca com a palavra pobre. Todos se iludem com promessas e ficam encantados com seus defensores. É o oxigênio que respiram, enquanto não pretendem ser como nós.

Ninguém nunca será capaz de acabar com os pobres do mundo, que já superam o bilhão, já que todos os demais precisamos deles e ninguém quer abrir mão de seus privilégios para melhorar sua condição.

Eliminar a palavra pobre não acabaria com os que sofrem com a fome e a sede, ou carecem de educação e de meios para se tratar. E, acima de tudo, de dignidade. E, contudo, talvez muitas coisas mudariam se deixássemos de chamar essas pessoas de pobres. É algo muito subliminar, mas todos nós precisamos dessa categoria que etimologicamente tem até uma conotação negativa.

Em sua origem latina, o pobre não é aquele que sofre alguma injustiça ou discriminação. A pobreza latina significava “parir ou gerar pouco” e se aplicava à pecuária. Pobre era o que carecia de fertilidade. Também se aplicava à terra estéril. Daí, também, a expressão pejorativa “Pobre homem”, porque nada é mais vergonhoso do que parecer incapaz de ser pai. Até mesmo a Bíblia estigmatiza mulheres estéreis.

Vamos chamá-los de excluídos dos bens da terra, ou da cultura, ou da medicina, ou da liberdade. Digamos que haja 18 milhões de pessoas, ou seja, 50.000 que morrem todos os dias de fome e a quem uma injusta distribuição da riqueza impede de continuar a viver, mas não chamemos essas pessoas de pobres. São nossas vítimas.

Digamos que ainda haja milhões de crianças sem acesso à educação, sem família, sem casa. São crianças como nossos filhos. Eles nasceram da mesma forma que os nossos, do ventre de suas mães. Gostam de aprender e brincar como os nossos, de se vestirem com dignidade, de poderem se alimentar e se sentirem livres, mas os chamemos de pobres. A palavra pobre, que foi prostituída pelo poder e os privilegiados, evoca, de fato, compaixão, não anseio por justiça e igualdade. Eles nos ajudam a nos sentir melhores se nós os ajudamos em suas necessidades.

A palavra pobre, embora muito sutilmente, nos leva a um sentimento de superioridade em relação aos menos afortunados do que nós. Às vezes, até nos conduz inconscientemente a pensar que são pobres porque não têm a inteligência suficiente para se superar, para triunfar. Nós os chamamos de “pobrezinhos” (coitados) como se fossem pessoas condenadas a uma certa e inevitável desgraça, e não ao fruto de nossas tiranias para com eles.

Há até quem defenda a equação de que pobre e sem cultura equivalem a violento, a bandido e, geralmente, a negro ou de cor. As grandes violências do mundo não vêm, contudo, dos ignorantes, mas daqueles que frequentam as melhores universidades e gerenciam as grandes finanças do planeta. Não conheço nenhum grande ditador ou especulador financeiro analfabeto. E há milhões de analfabetos pacíficos e cheios de honestidade, por exemplo, em todas as favelas do mundo. E milhares de talentos perdidos nas periferias das grandes cidades.

Vivemos em um momento e em um continente como a América Latina em que a palavra pobre se converteu em um curinga que exime os poderes de realizar grandes reformas que evitariam a existência de marginalizados e explorados. Atualmente os pobres servem a todos. Todos os governantes prometem acabar com a pobreza, enquanto tremem só de pensar que os pobres podem acabar, porque seria neste momento que teriam que abordar outros temas mais espinhosos que sempre ficam à margem sob o pretexto de terem que se preocupar com os pobres.

As diferenças entre os mortais nunca acabarão. O comunismo, que pregava a igualdade total já fracassou há muito tempo e seus líderes eram os primeiros a não serem pobres. Mas uma coisa é não ser possível que todos sejam iguais e outra é que continuem existindo grandes diferenças das quais deveríamos nos envergonhar.

É muito comum ouvir que se deve “cuidar dos pobres”. Não. Deve-se cuidar dos doentes, dos deficientes, dos abandonados, não dos pobres. É preciso dar aos pobres a possibilidade de que saiam de sua escravidão por eles mesmos e não acreditar que sempre serão assim porque são inferiores a nós, quando tudo o que nos separa deles é a falta de oportunidades, a segregação que relegamos a eles.

Os pobres não precisam das migalhas que nossa benevolência joga a eles, nem sequer de nossa compaixão e generosidade. Eles só precisam ter a permissão de ter acesso por direito à nossa festa de pessoas satisfeitas, sem fechar a porta na cara deles e sem chamar a polícia para que sua presença incômoda seja mantida à distância.

Precisam apenas que possamos dar o que roubamos deles e pertence a eles pelo simples fato de que são como nós, de carne e osso, de coração e inteligência, esta última superior à nossa em muitos casos.

Eles precisam que nós ofereçamos a possibilidade de ter acesso ao que nos permitiu ser o que somos e que sempre foi negado a eles. Por isso, quando cruzam nosso caminho e até pretendem ser como nós, preferiríamos não vê-los de perto. Eles nos dão até medo. Para nós, é melhor que fiquem perdidos no nevoeiro dos guetos.

Lembro-me de uma imagem do cartunista El Roto neste jornal. Era o tempo que em Madri os imigrantes mais pobres se aproximavam dos carros parados nos semáforos para limpar os para-brisas e receber algumas moedas por isso. Um daqueles “pobres” se aproximou de um carro de luxo com o para-brisa embaçado. O motorista fez um gesto de protesto pedindo que ele se afastasse. E o limpador explicou: “Eu não quero que me dê nada, quero apenas que me veja”. Era o suficiente saber que existia.

O papa Francisco está pedindo os católicos que não se conformem com “ajudar” aos pobres, mas que as pessoas vão até eles para vê-los, tocá-los e conviver com eles para ouvir suas demandas. Eles querem o “seu olhar”. Ao observá-los e ouvi-los sem preconceito, perderíamos o medo que tantas vezes nos inspiram, embora poderíamos acabar conhecendo o que preferiríamos não saber.

Talvez ouvi-los em vez de rejeitá-los faria com que não os chamássemos mais de pobres. Descobriríamos, no melhor dos casos, pobres de muitas outras coisas que não o dinheiro, assim como também somos, os satisfeitos. Talvez descobriríamos que os verdadeiros excluídos e solitários somos nós, não eles, que sabem viver e desfrutar juntos.

E eles descobririam que não serão mais ricos apenas por poder comprar objetos de luxo em nossos shoppings exclusivos, mas que serão, sobretudo, se souberem conservar seu espírito de solidariedade de grupo, sua capacidade de aproveitar a vida e de compartilhar, algo que para nós, que acreditamos ser ricos e privilegiados, parece cada vez mais difícil.

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