A infanta, perante o juiz
A decisão de convocar dona Cristina para depor é própria de uma democracia consolidada
A investigação financeira e tributária sobre a infanta Cristina levou o juiz José Castro a pedir que ela se explique a respeito de “determinados indícios objetivos” relacionados a fraudes tributárias e lavagem de capitais. Longe de pôr em perigo os pilares do Estado ou o futuro da Monarquia, a decisão do magistrado constitui um bom sintoma da saúde democrática de uma sociedade atravessada por correntes muito críticas acerca do funcionamento de suas instituições.
Nada tem de estranho que um juiz de instrução tramite um processo penal. O insustentável é o contrário: que não se pergunte nada à filha do rei por ser ela quem é. O que o juiz faz não só está dentro da normalidade processual como também demonstra a igualdade dos cidadãos perante a lei – valorizada pelo próprio rei dom Juan Carlos em seu discurso da véspera do Natal de 2011 – e a efetiva separação dos poderes.
O ato judicial ocorre depois do relatório do Ministério Público, que em 14 de novembro se apressou em negar a necessidade de intimar dona Cristina para depor – relatório este que foi criticado em alguns meios jurídicos pelo que implicava em termos de pressão sobre o juiz. Isso não paralisou o magistrado, que, tendo em vista as dúvidas sobre o comportamento tributário de uma cidadã, independentemente de que se trate de uma infanta da Espanha, a intima a depor com advogado.
O juiz não sustenta que existam provas de delitos, mas relata uma longa série de gastos pessoais de dona Cristina pagos pela sociedade Aizoon, os quais, a seu ver, podem constituir uma partilha de dividendos opaca aos olhos da Fazenda, contabilizados pela empresa como gastos operacionais sem relação com sua atividade. Para o juiz, essa firma era uma pessoa jurídica vazia, que servia de “estrutura imprescindível para o cometimento dos delitos fiscais que estão sendo investigados”. Se essas fraudes alcançaram ou não os 120.000 euros (386.676 reais, o limite para serem consideradas criminosas), ou se a posse pela infanta de 50% dessa sociedade a torna responsável pela gestão de recursos, ou se isso afeta apenas seu marido, Iñaki Urdangarin, administrador da Aizoon, são algumas das questões que deverão ser depuradas no processo. Que ambos faturassem para essa firma os seus gastos pessoais e familiares, ou que aparentemente alugassem parte de sua própria moradia familiar para a firma Aizoon são coisas que podem, ou não, serem atribuídas a causas explicáveis.
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O inaceitável é que tais dúvidas fiquem no ar e passem a fazer parte de um suposto lado obscuro da democracia. Os membros da família do rei não têm foro privilegiado e, portanto, se o auto de intimação for confirmado, dona Cristina deverá se apresentar no tribunal de Palma de Mallorca como uma cidadã qualquer. Não é positivo que tal depoimento ainda demore dois meses, depois de três anos de instrução, mas é fato que a defesa da infanta, a promotoria e as partes têm o direito de recorrer, e o juiz assinala um prazo prudente para dar tempo à tramitação de recursos, dos quais depende que seu auto de ontem seja ou não mantido.
Um eventual depoimento de dona Cristina não prejulga seu futuro judicial. Outras 42 pessoas foram intimadas no curso da mesma investigação, algumas das quais foram imputadas, e outras não. A apuração das inocências ou culpas deve ser postergada até que exista uma acusação formal ou se exclua a infanta do processo, uma vez ouvida. Que conste publicamente, em todo caso, que esse passo dado pelo juiz Castro só pode ser entendido como uma resposta digna à exigência de transparência que caracteriza a qualquer democracia consolidada.
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