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Na velocidade do jacaré

Assim como o animal do seu logotipo, a Lacoste se move com agilidade em seu habitat natural, mas precisou aperfeiçoar seus movimentos em outros terrenos. O toque urbano e moderno lhe foi conferido por aquele que é seu designer desde 2010, Felipe Oliveira Baptista, que festeja o 80º aniversário da empresa e também encontra tempo para montar em Lisboa uma exposição centrada em sua própria marca.

O diretor de criação da Lacoste, Felipe Oliveira Baptista.
O diretor de criação da Lacoste, Felipe Oliveira Baptista.

Seguir as pegadas de Felipe Oliveira Baptista (Lisboa, 1975) neste último ano foi um trabalho mais de detetive do que de fashionista. Em abril, o atual diretor de criação da Lacoste exercia a função de presidente do júri no Festival de Moda e Fotografia de Hyères, uma pequena cidade da Côte d’Azur para onde todos os anos peregrinam os papas da indústria em busca de novos talentos para engordar seus cofres. Ali, nos jardins da cubista Villa Noailles, enquanto Sidney Toledano– executivo-chefe da Dior– sujava os pés de lama sob a chuva para proclamar em uma tenda como vai bem o mercado de luxo, Baptista cavava uns minutos na sua apertada agenda para jurar agradecimento eterno ao evento que o tinha como protagonista.

Protagonismo que já havia sido seu antes, em 2002, quando ele obteve o prêmio de melhor designer, o que o colocou no mercado. “É um desses raros privilégios e uma enorme responsabilidade. Você sabe o que significa para esses rapazes quando você mesmo já esteve ali”, dizia, acelerado. Ele vendeu seu carro, um Honda Civic, para confeccionar a primeira coleção própria. “A outra opção era pedir o dinheiro aos meus pais, mas eles já tinham me ajudado bastante me pagando os estudos”, contaria meses depois, mais tranquilo, na sua cidade natal, Lisboa, onde montou uma exposição com a roupa que confecciona sob seu próprio nome. A mostra pode ser vista no Museu do Design e da Moda (Mude) até 16 de fevereiro.

Ele se confessa exausto. Não só por ter ficado na balada até altas horas na noite anterior, comemorando seu retorno como triunfal filho pródigo à Lux, a célebre discoteca lisboeta, mas também porque, como ele diz, “nos últimos meses dei tudo de mim”.

É um duplo aniversário: 10 anos da sua marca homônima e 80 da Lacoste, que o contratou em 2010 para suceder aquele que havia sido seu chefe no início da carreira, Christophe Lemaire. “Na tarde em que assinei o contrato, minha esposa apareceu com duas garrafas de champanhe e nos embriagamos até o amanhecer”, lembra, entre risos. “E quase perdemos um voo para irmos à Grécia de férias, as últimas realmente despreocupadas que tivemos desde então.”

"Meu trabalho é tirar da cabeça a imagem da camisa polo e explicar que a Lacoste pode fazer muitas outras coisas”, diz Baptista

Ela tem sido sua cúmplice quase desde o início. Juntos abandonaram Christophe Lemaire para tentar a carreira por conta própria. Séverine estava na área administrativa; ele, na de design. “Estabelecemos uma relação profissional antes da pessoal. Isso contribuiu para que conciliássemos nossa empresa e a vida juntos até hoje.” Apresentaram-se em Hyères com uma coleção minimalista e escura. “Quando vimos que nossos concorrentes tinham dado o máximo, com mil e um detalhes que eles ainda estavam trabalhando na última hora, pensamos: ‘Estamos acabados, então é melhor aproveitarmos que o tempo está bom e irmos à praia”. Contrariando o prognóstico, eles ganharam o primeiro prêmio. E depois o Andam, patrocinado pela LVMH, com o júri encabeçado por Carine Roitfeld. Por outro lado, ele deu de cara com a crua realidade do principiante: um ano e meio de vazio profissional. “Nunca fui a grande sensação da moda. E isso foi bom. O sucesso fulminante pode te matar com a mesma velocidade.”

Ele vem de uma família burguesa de Lisboa. Seu pai, Joaquim, enfrentou seu avô, um médico, que não aceitava que ele fosse piloto. “Teve de se alistar nas Forças Armadas para empreender sua profissão. Por isso, desde pequenos, ele dizia a mim e aos meus irmãos: ‘Façam o que quiserem da vida, eu os apoiarei...’. Não sei se em algum momento se arrependeu dessas palavras.”

O design foi a desculpa para fugir de Lisboa. Não havia boas escolas lá. Aos 18 anos foi para Londres. Entregou-se à cultura dos clubes. “Eu escutava drum’n’bass, me vestia com roupa de brechó, raspava a cabeça deixando uma crista, fiz piercings, ia dançar na The Blue Note e lá estava, ao meu lado na pista, Goldie com a Björk.. Mas, ao mesmo tempo, eu era um bom aluno.”

Chegou a ser o primeiro da classe. Tomou gosto pelo design gráfico, mas abriu um livro de Balenciaga que mudou sua vida. Seu primeiro trabalho foi na Max Mara. “Não pensei duas vezes, porque o primeiro trabalho sempre é o mais difícil de conseguir.”

A história da empresa que ele hoje lidera remonta a 1933, quando Allan H.Muhr, capitão da equipe francesa na Copa Davis de tênis, prometeu dar de presente a René Lacoste uma bolsa de jacaré caso ganhasse uma partida importante. O eco da promessa chegou ao outro lado do Atlântico e foi batizado pelo Boston Evening Transcript como “o jacaré”. O tenista se apropriou da lenda bordando o réptil desenhado por seu amigo Robert George. O resto é história. E negócios. Em 2011, a empresa bateu seu recorde de faturamento, com um lucro de 5,1 bilhões de reais. Em seus 80 anos, a marca soube rentabilizar suas origens esportivas, ampliando seu público básico para os closets mais, digamos, mauricinhos, e a partir daí para a miscelânea chamada de “cultura urbana”.

Depende de Baptista criar novos públicos e manter os já fidelizados. À noite, na festa de inauguração de sua exposição em Lisboa, uma fiel compradora francesa, dona de uma loja de luxo, resumia: “Ele consegue fazer isso. É muito criativo e, ao mesmo tempo, acessível”.

As linhas arquitetônicas, gráficas e, sim, esportivas das suas peças parecem buscar esse improvável equilíbrio entre a rua e o formal, o dia e a noite. “Adoro as dicotomias: urbano e luxuoso, forte e frágil, sexy e pudico.” Suas coleções para passarela são vendidas em apenas 60 das 1.500 lojas que a Lacoste tem espalhadas pelo mundo. Ele é consciente de que a camisa polo é o carro-chefe da empresa. “Mais da metade dos lucros provém dela. A Lacoste tem algo muito positivo e negativo ao mesmo tempo: você parte dessa peça icônica e reconhecida por todo mundo. Não há nada para intelectualizar. Com isso você tem metade do trabalho feito. A outra metade é tirar essa imagem da cabeça do seu cliente em potencial e vender a ideia de que a empresa pode ser muitas outras coisas.” Ele conhece as arestas do negócio. Embora não goste de apregoar, foi consultor de Nike, Uniqlo e outras empresas que ele prefere não mencionar.

Uma fotografia de uma exposição no festival de Hyères.
Uma fotografia de uma exposição no festival de Hyères.CHARLES FRÉGER

A viagem da Lacoste entre o passado e o futuro encontrou seu cenário nas instalações temporárias que a marca montou em algumas capitais do mundo. Em maio passado, em Tóquio, você poderia topar com um enorme contêiner branco em pleno Roppongi, uma área privilegiada da cidade, com perfil comercial. Na primeira sala, uma projeção metralhava uma camiseta polo com grafismos futuristas. Na segunda, o emblemático logotipo era reinventado em pequenas vitrines: camuflagem de jacaré, com fundo militar; jacaré bling-bling, banhado a ouro; jacaré chauvinista, com a bandeira da França etc.. A última sala se apresentava saturada como um arquivo histórico enquadrado e remixado, incluindo desde os jogos de René Lacoste com Charles Chaplin até as campanhas fluorescentes, passando por imagens publicitárias com o verniz do erotismo light dos anos setenta. Dali, as pegadas no chão transportavam o visitante até uma loja temporária na qual era vendida a coleção de aniversário e algumas peças concebidas por Peter Saville (o influente designer gráfico que tem no seu currículo incontáveis capas, de Joy Division a Pulp) para comemorar o esplendor. “Ah, você foi a essa instalação no Japão? Dá para acreditar que eu nem sequer a vi? Organizamos tantos eventos de aniversário que não pude supervisionar pessoalmente todos eles”, admite.

Baptista disse a Saville: “Faça o que você quiser”. E o homem que associou imagens ao som de Manchester se dedicou a desconstruir o logotipo até 80 vezes, reduzindo-o, na maioria delas, a um simples borrão. “Quis levá-lo ao limite, ao extremo de torná-lo irreconhecível e, inclusive quando se tornava mais abstrato, sua mancha continuava reconhecível. Há pouquíssimos logotipos que resistem a uma coisa assim conservando sua identidade”, disse ele ao fazer a apresentação.

Essa combinação de risco e respeito, de caminhar seguro e dar espaço à intuição, foi o que levou a empresa a renovar com Baptista por mais dois anos. Enquanto ele consolida seu caminho, o jacaré perpetua sua viagem se movimentando em todos os terrenos. Sua próxima parada: a Olimpíada de Inverno de Sochi (na Rússia), onde suas criações substituem às da Adidas como uniforme oficial dos atletas da equipe francesa.

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