_
_
_
_
_
Tribuna
São da responsabilidade do editor e transmitem a visão do diário sobre assuntos atuais – tanto nacionais como internacionais

A destituição do prefeito de Bogotá viola o direito internacional

Se não se respeita o direito internacional, a linha que separa as democracias das ditaduras pode tornar-se muito nebulosa

O prefeito de Bogotá, Gustavo Petro, foi destituído e não poderá exercer nenhum cargo público por um período de 15 anos, por decisão do Procurador Geral da República da Colômbia, que o declarou “disciplinarmente responsável” por “irregularidades na prestação do serviço público de limpeza”. A decisão do procurador viola a Convenção Americana de Direitos Humanos, ratificada pela Colômbia em 1973

Segundo o artigo 23, inciso 2, da Convenção, um Estado partícipe só pode suspender ou privar uma pessoa de seus direitos políticos depois de ela ter sido sentenciada, como produto de um processo judicial ajustado às garantias do devido processo penal. Especificamente, a Convenção estabelece a “condenação por juiz competente, em processo penal” como garantia contra a suspensão ou privação arbitrária dos direitos políticos das pessoas, que incluem os direitos de eleger, ser eleito e exercer cargos públicos de escolha popular.

Esse parâmetro estrito foi confirmado em 2011 pela Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso López Mendoza versus Venezuela, onde a corte, com sede na Costa Rica, analisou o caso de um ex-prefeito opositor que tinha sido impedido de exercer qualquer cargo público por seis anos por decisão do Controlador Geral, que havia determinado a responsabilidade do funcionário em dois casos de suspeita de corrupção. A decisão do controlador venezuelano foi expressa por meio de duas resoluções administrativas em 2006 com base no artigo 105 da Lei Orgânica da Controladoria Geral da República e do Sistema Nacional de Controle Fiscal (LOCGRSNCF).

De modo semelhante, na Colômbia, o Código Disciplinar único (CDU) permite à Procuradoria Geral da Nação impor a penalidade de “destituição e incapacidade geral” nos casos de “falta disciplinar” “gravíssima dolosa” ou com “culpa gravíssima”. Depois de 11 meses de investigação disciplinar contra Petro por supostas “condutas irregulares relacionadas com a prestação do serviço público de limpeza” em 9 de dezembro de 2013, o procurador resolveu destituir e cassar os direitos políticos do prefeito de Bogotá por 15 anos. O caso de Petro não é isolado. Desde 2009, o procurador Alejandro Ordóñez destituiu 13 membros do Congresso colombiano. No ano de 2012, impôs sanções disciplinares a 152 prefeitos, 177 vereadores, 9 governadores, 5 senadores, 2 deputados e 1 representante na Câmara.

Esse tipo de destituição por parte do procurador contradiz os artigos 98 e 122 da Constituição colombiana, segundo os quais “o exercício da cidadania” só pode ser suspenso “em virtude de decisão judicial nos casos que a lei determina” e quando o funcionário “tiver sido condenado […] pela comissão de delitos que afetam o patrimônio do Estado”.

Apesar disso, em outubro de 2013, a Corte Constitucional da Colômbia determinou a constitucionalidade desse procedimento e ratificou a sanção do procurador contra a senadora Piedad Córdoba que, em 2010, foi destituída e teve seus direitos políticos cassados por 18 anos. Com base nesse antecedente, prevê-se que qualquer apelação do prefeito fracasse (seja perante o próprio procurador, um juiz de contencioso administrativo ou a Corte Constitucional).

Na Venezuela, como na Colômbia, a disposição legal que levou à retirada dos direitos políticos de López Mendoza , contradizia o estabelecido na Constituição desse país, cujos artigos 42 e 65 limitavam a “suspensão dos direitos políticos” para os casos em que exista “sentença transitada em julgado” e contra os “condenados por delitos cometidos no exercício de suas funções”. Como na Colômbia em 2008, o Tribunal Supremo de Justiça da Venezuela ratificou as resoluções do controlador, tirando os direitos políticos de López Mendoza, de modo que se esgotaram os recursos internos disponíveis e se abriu a possibilidade para que ele leve o caso primeiro à Comissão e depois à Corte Interamericana de Direitos Humanos.

Enquanto se buscava resolver o caso na Costa Rica, a Human Rights Foundation (HRF) apresentou à Corte um termo de amicus curiae pelo qual se analisa a suspensão dos direitos políticos tanto sob o sistema interamericano como o universal (baseado no Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos) e o europeu (cuja referênca é a Convenção Europeia de Direitos Humanos), e se pede à Corte que ratifique o padrão constante no artigo 23, inciso 2 da Convenção. Por meio de sua sentença, em 1 de setembro de 201, a Corte ordenou que a Venezuela deixasse “sem efeito as resoluções” contra o ex-prefeito, e determinou que o Estado “adequasse o artigo 105” da lei que autorizava a ação do controlador. Em seu voto concorrente sobre a mesma sentença, o juiz Eduardo Vio Grossi esclareceu que “se torna claro, simples e categórico” que os direitos políticos podem ser suspensos exclusivamente por condenação por juiz competente, no processo penal.

Atualmente, Chile, México e Peru têm disposições legais semelhantes às da Colômbia e Venezuela que autorizam suspender os direitos políticos das pessoas por meio de decisões de menor instância que uma sentença judicial. Como observou o juiz Vio Grossi, “o fato de que nas legislações de alguns dos Estados Partícipes da Convenção se preveja que uma instância não penal possa impor a pena de cassação dos direitos políticos para a eleição de modo algum demonstra que se trata de uma prática pela qual “conste o acordo das partes sobre a interpretação do tratado”.

O principal argumento esgrimido pelo governo venezuelano foi que a suspensão do ex-prefeito era um esforço para “lutar contra a corrupção”, e assim cumprir com suas obrigações perante a Convenção Interamericana contra a Corrupção (algo que o procurador colombiano também costuma mencionar em suas decisões).

O juiz Vio Grossi esclareceu que, se bem que este tratado “estabelece a obrigação de os Estados partícipes tipificarem como delitos atos de corrupção […], em nenhuma parte dispõe ou contempla que a condenação por esse delito possa ser imposta por uma instância administrativa, e daí se depreende que, de modo algum, constitui […] uma modificação ou interpretação do disposto na Convenção, senão, precisamente todo o contrário.”

Quando foi cassado, as pesquisas apontavam o jovem Leopoldo López Mendonza como favorito para a prefeitura metropolitana de Caracas contra o candidato do então presidente Hugo Chávez, que construiu um governo autoritário, caracterizado por manipular eleições e utilizar o aparato estatal para fustigar a oposição e a imprensa independente. Coerente com o modo como governa, a Venezuela não somente descumpriu a sentença da Corte, mas também em 2012 denunciou a Convenção Americana sobre Direitos Humanos e hoje já não pertence ao sistema interamericano de proteção dos direitos humanos.

Na Colômbia, o prefeito Petro foi eleito em 2011, assumiu o cargo em 2012, e vinha governando de modo democrático, apesar de seu passado violento (do qual diz não ter remorsos) como membro do grupo terrorista M19, que no ano de 1985 invadiu o Palácio de Justiça da Colômbia, tomou como reféns os magistrados da Corte Suprema e executou 12 deles em razão do contra-ataque do Exército colombiano, que se recusara a negociar.

O direito internacional estabelece que nem Petro nem López Mendoza nem nenhum outro funcionário eleito democraticamente no continente americano pode ser destituído ou casado por uma merca decisão do controlador, mas somente por meio de uma condenação judicial pelo delito cometido no exercício de suas funções

Estados democráticos como o colombiano devem garantir que a luta contra a corrupção ou a incompetência administrativa se realize respeitando o direito internacional dos direitos humanos, pois do contrário a importantíssima linha que separa as democracias das ditaduras pode ir-se tornando cada vez mais nebulosa. .A Colômbia deve se enquadrar no direito e reconduzir o prefeito de Bogotá ao cargo.

Javier El-Hage é diretor jurídico e Alejandro Gutiérrez, advogado associado da Human Rights Foundation, uma organização internacional de direitos humanos com sede em Nova York

Arquivado Em

Recomendaciones EL PAÍS
Recomendaciones EL PAÍS
_
_