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“Faço cinema sobre as pessoas que não saem no Google”

Em entrevista em fevereiro de 2013 ao El País, Eduardo Coutinho conta os caminhos que o levaram ao cinema: "O documentário não vive de ilusões"

Elsa Fernández-Santos
Eduardo Coutinho, à direita, durante a filmagem de 'Cabra marcado para morrer' (1962-1984).
Eduardo Coutinho, à direita, durante a filmagem de 'Cabra marcado para morrer' (1962-1984).EL PAÍS

Figura central do documentário latino-americano, Eduardo Coutinho (São Paulo, 1933) balança-se sobre o balanço gramatical do “portunhol” e se apresenta como um homem “sem biografia”. A afirmação é feita com voz impetuosa quando, na esteira de seu último filme, As Canções, sugerem a ele que faça o mesmo que os homens e mulheres que desfilam pelo seu filme, que cante e evoque a história da música de sua vida. “Não só canto muito mau como eu te falo a partir do vazio, não tenho memória, não tenho palavras…”, ruge Coutinho, do outro lado do telefone, para, segundos depois, abrir a fenda pela qual entrará todo o vendaval de uma poderosa personalidade que reivindica a beleza e a sabedoria do homem comum: “Se quer que eu te diga, minha canção seria uma canção barata e vulgar, porque gosto do vulgar. Encontro algo muito bonito no brega, sou um homem sem preconceitos sobre a cultura de massas. Pelo contrário”.

“Abandonei a ficção pelo documentário para livrar-me de mim mesmo. Era a única possibilidade de esquecer minha própria história: falar da dos outros”, explica sobre o salto que deu há décadas para deixar as margens que o afastavam dos focos necessários para poder buscar a si mesmo. “O documentário foi, é e será sempre cinema marginal. E além disso não tenho nem a esperança nem o convencimento de que em algum dia deixe essas margens. Mas direi mais: para mim, o documentário tem um atrativo que jamais terá a ficção: não vive de ilusões”.

Eduardo Coutinho, ontem em Pamplona.
Eduardo Coutinho, ontem em Pamplona.Txisti

De Cabra marcado para morrer (1962-1984), filme chave sobre a ditadura brasileira, à citada As Canções (2010), a filmografia de Coutinho é um espectro do cinema político, “mas não militante” que se afasta dos postulados do Cinema Novo. “Convencer aos convencidos não vale absolutamente para nada. Gosto do indeterminado, do que não tem uma intenção declarada, onde cada um pode decidir o que diz a cada filme”.

Filmes que se safam de qualquer retórica e nos quais há uma postura ética em frente à beleza. “A beleza tradicional, harmônica, não me interessa, porque eu quero fazer arte imperfeito e humilde, baseada nas sobras, no detritos, no lixo, nos fragmentos da vida”.

Em seu cinema, no qual a palavra é imagem, pulsa a vida de pessoas comuns transmitida através de seus depoimentos. “Interessa-me a palavra porque, como dizia Walter Benjamin, o passado narrado é mais forte que o passado vivido. Além disso, falamos com a cara e com o corpo. E nossa maneira de falar ante a câmera é única e não se repete. Brasil é um país com milhões de analfabetos totais ou funcionais, por esta razão há milhares de pessoas que não se corromperam nem com a televisão nem com quase nada, milhares de pessoas que se expressam como antes. E isso nos oferece uma enorme riqueza na linguagem oral que a mim me interessa muito recolher”.

Apesar de ter-se formado na equipe televisiva de Globo Repórter —famoso programa de reportagens que lhe permitiu documentar em profundidade e apesar da censura importantes assuntos do Brasil contemporâneo—, Coutinho “detesta” o jornalismo. “Fiz durante anos e me cansou. O jornalismo pode ser bom ou mau, mas no Brasil é, em geral, muito mau. O jornalista tem a obrigação de buscar os dois lados, mas eu só estou interessado em um. Eu faço cinema sobre as pessoas que não saem no Google, que falam de sentimentos. Interessa-me algo tão difuso como a sabedoria popular”.

Escutar sem julgar para chegar, explica, a um pacto com as pessoas cujas ideias reflete: “Eu aceito a palavra do outro como minha e eles, quando veem o filme, aceitam minhas palavras como suas”.

Jogo de verdades e mentiras, o cinema de Coutinho bebe do teatro em sua relação com o espaço e o coloca em cena. “Quando eu comecei, faz 50 ou 40 anos, queria fazer teatro, ser ator. Mas era tímido e a vergonha me separou dessa vocação. A vida é teatro, ou sonho, como dizia Calderón, e eu quero que essa relação efêmera de toda representação ocorra em meus filmes. Todos fazemos teatro a cada dia, seguimos com nossa cortina e nosso palco”.

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