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As lições para sobreviver à seca viajam do Brasil à África

Inspirada em projeto brasileiro, Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura constrói cisternas em países africanos e começa a mudar a realidade local

Marina Rossi
Mulheres mostram a horta mantida graças à água da cisterna.
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Desenhando com o dedo indicador no chão de areia fofa e alaranjada, o agricultor brasileiro Sueldo Vicente de Moraes tentava explicar como funciona o sistema de tecnologia simples construído em sua comunidade para reutilizar água, em Mossoró, no Rio Grande do Norte. Ao redor dele, os olhos atentos de agricultores e algumas autoridades da comunidade rural de Tiamméne Pass, a cerca de 260 quilômetros de Dacar, capital do Senegal, prestavam atenção na explicação. “As minhocas consomem os resíduos nesta parte da decomposição”, apontava Moraes. “No final do processo, a água chega limpa para irrigar as plantas”, finalizou o brasileiro de 46 anos a uma dezena de senegaleses sentados no pé de uma estrutura imensa, usada para captar e bombear água do solo para as famílias locais.

A alguns quilômetros dali, na pequena aldeia de Ndiana Peulh, essa tecnologia de captação de água não existia. Mas a ausência dela hoje fez surgir outra forma de abastecimento. Sem rede elétrica e tampouco água encanada, os casebres de taipa com teto de sapé ficaram ainda menores depois que a grande cisterna, ainda branquinha, fora instalada. Construída em março deste ano, o reservatório é um dos 19 que existem hoje no país africano e faz parte da etapa piloto do projeto intitulado Um Milhão de Cisternas para o Sahel. Financiada pela Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), em parceria com o governo italiano, a iniciativa é totalmente inspirada no projeto brasileiro de mesmo nome, desenvolvido no início dos anos 2000 no semiárido e que ganhou reconhecimento internacional.

A inspiração na versão brasileira da iniciativa não foi só devido ao seu êxito. O Sahel, faixa que vai de leste a oeste do continente africano, entre o deserto do Saara e a savana do Sudão, é uma área com clima parecido com o do semiárido brasileiro, embora algumas regiões sejam ainda mais secas que no Brasil. Por causa das suas similaridades, nesta etapa do projeto, 18 agricultores e agricultoras brasileiros foram visitar algumas comunidades senegalesas onde os reservatórios foram construídos para trocar experiências como a de Sueldo Moraes, numa espécie de intercâmbio. “O mundo aprendeu muito com vocês”, afirmou Coumba Sow, coordenadora do time de resiliência para a África Ocidental da FAO. “Eu até poderia falar aos agricultores daqui do Senegal sobre a importância desse projeto, mas é ainda melhor quando os próprios atores dessa transformação falam sobre ela”.

Os agricultores brasileiros são pessoas simples no trato e cheias de conhecimento. Muitos deles nunca haviam saído sequer dos Estados onde vivem. Recolhem as sementes de melancia do prato do café da manhã do hotel para plantar no Brasil e pedem ao líder governamental, que ofereceu um jantar certa noite, para doar a comida que sobrou a uma das comunidades visitadas. Vieram dos dez Estados englobados pelo semiárido brasileiro – os nove do Nordeste e Minas Gerais -, por meio da Articulação do Semiárido (ASA), que é composta por mais de 3.000 entidades. Passaram sete dias viajando em um pequeno ônibus de 25 lugares pelo interior do Senegal, acompanhados pela reportagem do EL PAÍS, técnicos da ASA e um representante da FAO. Embora acostumados com a aridez e a vivência em locais quase sempre esquecidos pelo poder público, sentiram o calor, a secura e a realidade na pele. “Há 60 anos eu fui criado sem saber ler e nem escrever”, disse, emocionado, o senhor Carlos Soares de Menezes, 65, de Monte Alegre, em Sergipe, ao final de um dia inteiro percorrendo aldeias no interior do Senegal. “E ainda hoje tem gente assim. Isso é triste demais, achei que não existisse mais gente assim”, afirmou, após conhecer regiões onde não há escolas por perto. As crianças e especialmente as mulheres locais são analfabetas. “A gente reclama de barriga cheia no Brasil”, concluiu o senhor Sebastião Rodrigues Damasceno, 63, vindo do município alagoano de Santana do Ipanema.

Dahra, a 260 quilômetros de Dacar, um dos municípios onde há aldeias que receberam a cisterna, está quase na fronteira com o deserto do Saara. Chove, em média, 250ml por ano, menos da metade da média de 500ml registrada no semiárido brasileiro. O vento vindo do deserto faz a areia grudar na superfície da pele melada pelo suor provocado por um calor de quase 40 graus.

É uma cidade miserável, de pouco mais de 30.000 habitantes. O asfalto passa somente na via principal e o lixo nas ruas é parte da paisagem das vias de terra. Os animais – galinhas, principalmente, além de cabras e jumentos com as costelas à mostra – dividem o espaço com crianças vestidas com camisas de clubes de futebol europeu, que estão sempre com as duas mãos juntas, em forma de concha, pedindo algum dinheiro. De maneira geral, as únicas construções finalizadas são as mesquitas, que estão espalhadas por todo o país de maioria muçulmana, na mesma medida em que as igrejas evangélicas estão pelo Brasil. O cinza do reboco inacabado das casas de Dahra e o laranja de suas ruas de terra fazem contraste com as vestimentas das mulheres, que se cobrem de panos coloridos e estampados dos pés às cabeças.

O Sahel

É uma faixa formada por municípios que estão em dez países da África, da costa oeste à leste: Burkina Faso, Chade, Gâmbia, Eritreia, Guiné Bissau, Mali, Mauritânia, Níger, Senegal e Sudão. Desses, Senegal, Níger e Gâmbia fazem parte do projeto piloto de construção de cisternas.

No sentido norte-sul, o Sahel fica entre o deserto do Saara a Savana do Sudão, constituindo uma zona de transição entre a aridez do deserto e as terras férteis da savana.

A quantidade de chuvas varia entre 150 e 300 milímetros por ano, dependendo do local, e 80% da população da região depende da agricultura para sobreviver.

São elas, inclusive, o público alvo do programa Um Milhão de Cisternas no Sahel – nome meramente ilustrativo, como membros da FAO explicaram, já que esse número não chega perto da demanda real de toda a região. O foco nas mulheres é por uma razão prática: culturalmente, são elas as responsáveis por buscar água para a família, num ato hercúleo que forma as históricas imagens de mulheres com baldes na cabeça, seja na África, seja no Brasil.

Antes da construção do reservatório, as mulheres da aldeia de Ndiana Peulh precisavam caminhar cinco quilômetros, dia sim, dia não, atrás de água. “Ficávamos muito cansadas”, disse uma delas, com voz baixa, no dialeto local, o pulaar, traduzido para o francês – a língua oficial do Senegal, embora a maioria fale wolof - e, em seguida, ao português. “A cisterna não só resolveu o problema da água, como também nos empoderou”, completou Elisângela Ribeiro de Aquino, 46, de Riacho dos Machados, em Minas Gerais. “Sabemos o que é andar com uma lata d’água na cabeça”.

O Semiárido

É formado por mais de 1 milhão de quilômetros quadrados, englobando municípios dos nove Estados do Nordeste e uma parte de Minas Gerais. Tem cerca de 24 milhões de habitantes, entre a população rural e urbana.

Para um município ser considerado semiárido, é levada em conta a quantidade de chuva que cai ali, sua distribuição ao longo do ano, a evaporação e a aridez do solo. O Ceará é o único Estado que tem quase 100% dos seus municípios considerados semiáridos.

A estimativa da ASA é que as 1,3 milhão de cisternas construídas em todo o semiárido brasileiro atendam a cerca de 5 milhões de pessoas. Apesar da grande abrangência, calcula-se que ainda exista um déficit de 300.000 cisternas para consumo humano e 600.000 tecnologias de água para produção, como a construção de barragens e poços, para suprir a necessidade de água na região.

Nesse sentido, a aldeia Keur Bara Tambedou, na região da cidade de Kaolack, a 200 quilômetros de Dacar, já está um passo à frente. Ali, uma associação de agricultoras formada por 73 mulheres que trabalham na terra mostrava na prática o que significa esse nova força. Guilé Mané, de 39 anos, uma mulher alta e esbelta, que carregava o filho nas costas amarrado por um pano colorido, é a líder da associação e explicou à comitiva de brasileiros os impactos positivos causados pela cisterna. “Antes, o que produzíamos era praticamente usado para pagar a água. Agora com a cisterna, agradecemos a Deus”, disse. “A cisterna nos deixou mais unidas também”. Elas se dividem em pequenos grupos que se revezam entre o trabalho no campo e a venda dos alimentos produzidos. E garantem que o que ganham com a produção na terra fica somente para elas e não é dividido com os maridos, que podem se casar legalmente com até quatro mulheres ao mesmo tempo, segundo a legislação senegalesa.

Troca de sementes

Sobre um tapete colorido estendido no chão de terra, a agricultora brasileira Maria Silvanete Lermen, 43, do município pernambucano de Exú, descrevia o presente que trouxera do Nordeste do Brasil para as senegalesas. “Assim como muito do que temos no Brasil veio da África, trouxemos de volta algumas coisas para vocês”, dizia. “Esta batata doce já está brotando. Se plantar no inverno, nasce rapidinho. E a mamona, do fruto fazemos óleo para hidratar a pele, e plantada, ela serve para adubar a terra. Plantem longe dos animais, porque ela é venenosa”, explicava para as mulheres de Keur Bara Tambedou. O armazenamento de sementes, algo que não é praticado ali, é uma das formas de garantir a safra mesmo em momentos de seca, explicam os brasileiros. “O armazenamento das sementes nos deixam menos dependentes”, disse a mineira Elisângela de Aquino.

Esse conhecimento sobre o armazenamento de sementes, assim como a construção dos reservatórios, faz parte de um leque de ações contidas dentro da política desenvolvida para sobreviver à seca no Brasil. "A cisterna nunca chega sozinha a uma comunidade", explica Cícero Félix dos Santos, da coordenação nacional da ASA. "Na verdade, ela é o último componente. Primeiro, existe um trabalho de conscientização, de sensibilização, formação de pedreiros para a construção... Isso tudo leva até um ano para ser finalizado”. Iniciada no final do ano 2000, ainda sob a gestão do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, a iniciativa da construção de cisternas partiu da sociedade civil organizada, que levou a proposta até Brasília. “Até então, as políticas desenvolvidas para o semiárido eram chamadas pelos governos de política de combate à seca”, diz Rafael Neves, coordenador do programa Um Milhão de Cisternas. “Mas não se combate a natureza. Se adapta à ela. Por isso, em uma região onde chove só de três a quatro meses, a principal estratégia [para sobreviver] é estocar água para beber, para plantar e guardar sementes nativas”.

O registro da primeira cisterna construída no Brasil partiu do pedreiro Manuel Apolônio de Carvalho, conhecido como Nel. Depois de passar uma temporada vivendo em São Paulo trabalhando na construção de piscinas, ele voltou à cidade de origem, no interior de Sergipe, com a ideia na cabeça: construir um reservatório para armazenar água para os tempos de estiagem. A partir da cisterna de Nel, entidades se organizaram e bateram na porta do ministro do Meio Ambiente na época, José Sarney Filho. A fase piloto foi implementada no último ano da gestão de FHC, em 2002, e virou política pública, sob o guarda-chuva do programa Fome Zero, na gestão do ex-presidente Lula. “Mas houve um trabalho de convencimento antes”, pondera Cícero dos Santos.

Cisterna em comunidade rural do Senegal, uma das primeiras da fase piloto do projeto.
Cisterna em comunidade rural do Senegal, uma das primeiras da fase piloto do projeto. M. R.

Passados alguns anos da construção das primeiras cisternas brasileiras, Santos lembra que a realidade do semiárido começou a se transformar. “A nossa conquista foi tirar a lata d’água da cabeça das mulheres”, diz. "Antes, o primeiro presente que uma criança ganhava, lá pelos cinco anos, era uma latinha dessas de tinta, para colocar na cabeça. Os meninos carregam no ombro, pendurada por um pau, porque os homens não têm tanto equilíbrio quanto as mulheres”, explica ele.

O ovo de Colombo

José Graziano, ex-ministro extraordinário de Segurança Alimentar e Combate à Fome do Governo Lula, foi quem encabeçou as ações do projeto brasileiro. Hoje, à frente da direção-geral da FAO, foi ele quem teve a ideia de levar as ações desenvolvidas no Brasil para a África. "Estive pela primeira vez no Senegal em 2013, e perguntei por que não havia cisternas lá", disse, por telefone, de Roma, onde fica a sede da FAO. Ele conta que enfrentou dificuldades para convencer as autoridades sobre a viabilidade de sua ideia. "No início, houve uma certa descrença, assim como houve com o projeto um Milhão de Cisternas no Brasil", diz. "As pessoas sempre pensam que a solução dos problemas imediatos depende de coisas sofisticadas e muito caras. Quando você aparece com uma solução simples e inovadora, é como Colombo, que pôs o ovo em pé".

Mulher caminha com balde d'água na cabeça em Dahra, Senegal.
Mulher caminha com balde d'água na cabeça em Dahra, Senegal. M. R.

Coumba Sow, que trabalhava com Graziano em Roma na época, e hoje atua na FAO a partir de Dacar, era uma das "descrentes". "Quando se falava no programa Fome Zero e na construção de um milhão de cisternas, parecia surreal", lembra ela. "Mas fomos até o Brasil e vimos que era possível". Hoje, as cerca de 1,3 milhão de cisternas fazem parte da paisagem quando se anda pelo semiárido brasileiro. E o projeto africano pretende, aos poucos, fazer o mesmo pela geografia do continente. Graziano explica que o objetivo para os próximos três anos é de levar reservatórios a 10.000 mulheres do Sahel. "A cisterna não é só a água potável, é a melhoria das condições de vida e da habitação. Esse é o conceito que levamos do Brasil para a África, com bons resultados".

O efeito positivo da etapa piloto do projeto africano pretende sensibilizar investidores e o Governo para tornar a construção de cisternas uma política pública, assim como ocorreu no Brasil. Com 15,8 milhões de habitantes no Senegal, e mais da metade da população vivendo em áreas rurais, o programa terá de ser ainda mais ambicioso que a versão brasileira, além de levar em conta algumas adaptações. De maneira geral, o continente africano está algumas décadas atrás do Brasil em termos de desenvolvimento. Um exemplo é a falta de rede elétrica e o telhado de sapé nas casas da zona rural visitadas pela reportagem. Como o telhado é parte fundamental para a captação da água da chuva que será armazenada, foi preciso construir uma espécie de telhado grande de alumínio, de 60 metros quadrados, para captar a água. A chuva, cai somente ao longo de três meses no país, que é dividido em duas estações: quente e seca e quente e chuvosa, sendo essa entre julho e outubro.

Essa escassez de chuvas no Senegal é ainda maior que no Brasil. Ainda assim, a seca brasileira, tema praticamente esquecido pelos candidatos à presidência durante a eleição deste ano, é uma questão que não está totalmente sanada. Durante o pleito, o presidente eleito Jair Bolsonaro afirmou que pretendia importar a tecnologia de Israel para dessalinizar a água do mar e garantir a distribuição de água no Brasil. Mas para Cícero dos Santos, da ASA, a proposta mostra “desconhecimento” do presidente sobre a região. “Temos o semiárido mais populoso e chuvoso do planeta. Não falta água, faltam políticas públicas que garantam captação, distribuição e gestão das águas da chuva”, diz. “Isso sim resolve o problema da escassez”.

A reportagem viajou a convite da ASA.

Comunidade rural no Senegal, com a cisterna no canto esquerdo.
Comunidade rural no Senegal, com a cisterna no canto esquerdo.Fernanda Cruz / ASA

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