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Senado tenta salvar a pele enquanto STF caminha para mudar foro privilegiado

Projeto aprovado no Senado blinda parlamentares contra a prisão antes do julgamento em instâncias superiores

Gil Alessi

As discussões sobre restrição do foro por prerrogativa de cargo, conhecido como foro privilegiado, ganharam força nesta semana em duas frentes distintas - e em certa medida opostas. Tanto o Supremo Tribunal Federal quanto o Congresso estudam mudanças no dispositivo, que foi introduzido pela Constituição de 1988. Na legislação atual, ministros de Estado, parlamentares e chefes do Executivo (entre outros) são julgados por cortes superiores, e não na Justiça de primeiro grau. Enquanto os parlamentares tentam aprovar um texto que lhes garanta salvaguardas em caso de processo - uma questão de autopreservação em tempos de Operação Lava Jato -, o STF estuda acabar com o que alguns ministros da Corte chamaram de um elemento "aristocrático" que abre as portas para a impunidade. 

O ministro Luís Roberto Barroso, relator do caso.
O ministro Luís Roberto Barroso, relator do caso.Nelson Jr. (STF)

Os críticos do modelo atual afirmam que o mecanismo é manipulado pelos agentes políticos para evitar punições: atualmente se o caso de um parlamentar está no STF e ele renuncia ao mandato o processo vai para a Justiça comum, onde começa a tramitar da estaca zero. Se ele é eleito novamente, volta ao STF. Com esse sobe e desce de instâncias aumentam as chances da pena prescrever e o crime ficar impune. Outro problema do foro privilegiado seria quantidade de pessoas que ele abrange: estima-se que atualmente mais de 38.000 autoridades tenham esse direito. Os defensores do foro por prerrogativa dizem que ele protege os juízes de primeira instância de pressão por parte de grupos políticos.

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Na quarta-feira o Senado Federal aprovou por 69 votos a zero uma Proposta de Emenda à Constituição que prevê o fim do foro, que seria mantido apenas para os presidentes da República (e seu vice) e das Casas do Legislativo. Os parlamentares, no entanto, colocaram no projeto um artigo que veda o início do cumprimento de pena após condenação na segunda instância - jurisprudência aprovada pelo STF considerada importante para o sucesso da Lava Jato, mas que pode ser discutida novamente na Corte. Na prática, os congressistas acossados pela operação pretendem se blindar para evitar a prisão antes do julgamento de todos os recursos às cortes supremas, o que leva mais tempo do que um julgamento com foro privilegiado - e consequentemente aumenta as chances da pena prescrever.

O modelo atual, com a prisão após confirmação de sentença na segunda instância, apesar de defendido pelos procuradores de Curitiba, é criticado por alguns juristas e advogados que dizem que, além de tirar direito do réu, o pressionaria a firmar acordo de colaboração premiada, por exemplo.

Agora o texto da PEC sancionado pelos senadores segue para votação na Câmara em dois turnos. Lá, boa parte dos deputados também está na mira da Justiça, mas não se sabe quando tema entrará na pauta, dado a movimentação provocado pelo novo pico da crise política . Além disso, na Casa Baixa os parlamentares estão às voltas com negociações para votar a reforma da Previdência proposta pelo Governo de Michel Temer, o que deve ser a prioridade na pauta. O relator da PEC, Randolfe Rodrigues (Rede-AP), chamou o foro de “excrescência”. Ele afirmou que a iminência do STF discutir a questão apressou os senadores a votarem seu próprio texto. A matéria estava pautada para ser analisada há mais de três semanas.

A questão no Supremo

No mesmo dia em que o Senado avançou na discussão da matéria, o STF também começou a analisar o tema. O ministro Luís Roberto Barroso, relator do caso na Corte, propôs ao plenário restringir o foro para crimes que tenham ocorrido no exercício do mandato e em função dele. "O sistema atual abrange gente demais, é muito ruim e funciona muito mal", disse. De acordo com ele, em nenhum país tantas pessoas são beneficiadas pelo foro. Se aprovada, a mudança na regra deve desafogar o STF, sobrecarregado com centenas de processos relativos à Lava Jato, turbinados este ano pelas delações massivas da empreiteira Odebrecht e dos irmãos Batistas, da JBS. E ao mesmo tempo pode deixar em situação complicada – em muitos casos nas mãos do juiz Sérgio Moro - políticos sem mandato que receberam recursos de caixa 2 para se eleger, o que é o caso de dezenas de parlamentares investigados pela operação.

“Em duas dentre cada três ações penais [que chegam ao STF], o mérito da acusação sequer chega a ser analisado pelo Supremo, seja pelo declínio de competência [mudança de instância] ou porque prescreveu”, afirmou o magistrado. O voto de Barroso foi acompanhado pelas ministras Rosa Weber e Carmen Lúcia – presidenta da Corte – e por Marco Aurélio. O ministro Alexandre de Moraes pediu mais tempo para analisar a questão, e o julgamento foi suspenso. No entanto, ele deu a entender que é contra uma revisão no mecanismo de foro. Lúcia afirmou que "foro não é escolha e prerrogativa não é privilégio. A igualdade não é opção, é obrigação”.

Barroso também mencionou as manobras feitas por políticos para escapar da Justiça comum, o que ele considerou como “desmoralizante” para o STF. "É vergonhoso o fato de que quando alguém manobra para subir à instância do Supremo, isso é tratado como obstrução de Justiça". Nomeações feitas de nomes investigados na Lava Jato se tornaram frequentes nos últimos anos. No ano passado a então presidenta Dilma Rousseff nomeou Lula, que era investigado em processos da operação a cargo do juiz Sérgio Moro, para a Casa Civil. Após a divulgação de grampos telefônicos onde os dois foram gravados discutindo o tema, o ministro Gilmar Mendes tomou a controversa decisão de barrar a indicação. Em fevereiro deste ano, seu sucessor, Michel Temer, recriou a Secretaria-Geral da Presidência da República e nomeou seu braço direito Moreira Franco, outro investigado na Operação Lava Jato, para chefiá-la. Neste caso, no entanto, o STF entendeu que não havia problema em manter o posto.

Em breve menção aos criminosos de colarinho branco, Barroso criticou o elemento “aristocrático” do foro: “Nós criamos um direito penal incapaz de colher qualquer pessoa que ganhe mais de cinco salários mínimos. Criamos um país de pessoas ricas delinquentes”. De acordo com ele, com esse modelo "as pessoas são honestas se quiserem, se não quiserem não ocorre nada [o crime prescreve]". O Ministério Público Federal defendeu a restrição do foro. Para o procurador-geral da República, "a prerrogativa de foro provoca uma montanha russa processual", que "desvirtuou" a vocação do STF. Segundo ele, o foro "foi parte do tributo que a democracia precisou pagar para alvorecer", mas "nestes 30 anos o país evoluiu, e se desprendeu do ranço autoritário que bafejava a política até então".

O ministro Alexandre de Moraes concordou que “o sistema é disfuncional”, mas ressaltou que “não há relação entre aumento da impunidade com a ampliação do foro pela Constituição de 1988”. De acordo com ele, não existem estudos que apontam que na primeira instância existiu no país um combate efetivo à corrupção nas elites políticas. Ele defendeu a atuação da Corte: “A tradição brasileira era de impunidade e coube ao STF um passo importantíssimo na mudança desse paradigma”, afirmou, referindo-se ao julgamento do mensalão. “Não podemos nos deixar levar por erros e exageros”, diz. No entendimento de Moraes, as alterações propostas por Barroso iriam fazer com que a Corte levasse “meses” para definir o que fica no STF e o que vai para instâncias inferiores.

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