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Zapatismo estimula indígenas a participar das eleições

Dezenas de povos nativos do México elegem uma mulher, María de Jesús Patricio, para a eleição de 2018, em iniciativa apoiada pelo EZLN

J. L.
O subcomandante Galeano e membros do EZLN durante a abertura da Comissão Nacional Indígena.
O subcomandante Galeano e membros do EZLN durante a abertura da Comissão Nacional Indígena.Daphnée Denis

Magdalena García já se via e se dizia velha, cansada. Ela se aflige dizendo que sua mensagem não fica clara, quando saem de suas palavras dardos carregados de uma realidade acachapante. “Ninguém quer nos ver, ninguém quer nos escutar”, afirma essa índia mazahua de 59 anos, seis filhos, presa por um ano e meio. “De modo algum”, repetia para si mesma, pois, se já é difícil no México imaginar uma mulher presidenta, o que se poderia fazer nas eleições se ela ainda por cima for uma indígena? “Jamais imaginei que chegaríamos a ver essa semente”.

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A semente a que se refere é María de Jesús Patricio Martínez, Marichuy, a candidata com a qual o Congresso Nacional Indígena (CNI) — que reúne dezenas de etnias do México — tentará concorrer nas eleições presidenciais do ano que vem e que foi escolhida neste fim de semana em San Cristóbal de las Casas, Chiapas, epicentro do indigenismo mexicano. Mas não só isso. Ali está também o berço do Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN), que, ao apoiar essa aposta, procura recuperar o protagonismo.

Passaram-se mais de 23 anos desde que o EZLN pegou em armas e declarou guerra ao Estado mexicano, em 1 de janeiro de 1994, mesmo dia da entrada em vigor do Tratado de Livre Comércio (TLC) entre Estados Unidos, Canadá e México, o mesmo que os três países se preparam para renegociar. Passadas mais de duas décadas, a situação dos povos indígenas do México continua a ser bastante frágil. A popularidade do zapatismo, criada em torno da figura do subcomandante Marcos, guerrilheiro que inspirou várias gerações em nível internacional, também foi se diluindo ao longo dos anos.

A mística do EZLN de Marcos, que foi rebatizado como subcomandante Galeano a partir de 2014, não desapareceu. Neste fim de semana, reuniram-se em San Cristóbal de las Casas mais de 840 delegados do Congresso Nacional Indígena (CNI), representando cerca de 60 povos de todo o país, acompanhados por mais de 2.000 pessoas, entre convidados e simpatizantes, número que ultrapassou as previsões. As câmeras, os olhares e os comentários voltaram a se centrar na figura do ícone encapuzado, o guerrilheiro mestiço que nem sequer precisou usar da palavra para atrair todas as atenções. Ele apenas apareceu ali no sábado de manhã, durante a cerimônia de abertura do encontro, na companhia de outro líder do EZLN, o subcomandante Moisés, que fez um discurso de apoio. Os dois se retiraram para o fundo do auditório, com os demais membros do comando. De braços cruzados, Marcos (Galeano), com seu gorro na cabeça, apenas observava, fumando seu indefectível cachimbo. “Foram eles que abriram os nossos olhos, e agora são eles que nos dão força para entrarmos nisso com toda a vontade”, afirma José Carrillo, índio wixárika, vindo do Estado de Jalisco.

O primeiro lance dentro do tabuleiro eleitoral foi dado no ano passado, quando se cumpriram 10 anos da guerra contra o narcotráfico empreendida pelo ex-presidente Felipe Calderón, criando uma cicatriz que não se fechou sob o mandato de Enrique Peña Nieto e que deixou mais de 100.000 mortos e 30.000 desaparecidos. O CNI aceitou o desafio lançado pelos zapatistas, que surpreenderam com a proposta de participar das eleições com uma candidata única, mulher e indígena, aposta que se choque com um duplo estigma da sociedade mexicana e entre os próprios indígenas.

Os subcomandantes Galeano e Moisés na abertura da Comissão Nacional Indígena.
Os subcomandantes Galeano e Moisés na abertura da Comissão Nacional Indígena.Daphnée Denis

“Não é que tenhamos muito interesse no processo eleitoral, nos votos ou em conquistar a presidência. Não estamos nem aí para isso. Queremos voltar a dar visibilidade para a luta indígena, como o EZLN conseguiu fazer em 1994”, explica Carlos González, um dos porta-vozes do CNI, que admite que nas discussões realizadas no ano passado se aventou também a possibilidade de recorrer às armas, o que foi rechaçado pelos zapatistas. A situação dos povos indígenas, insiste ele, chegou a um limite. “Ninguém quer nos ver, ninguém que nos escutar, porque os que governam o país têm outros interesses, só querem nos dar migalhas”, diz Magdalena García. “Não querem que existamos”, resume José Carrillo. Somente em Chiapas, quase 79% da população vivia, em 2014, no nível da pobreza, ante 75% em 1990, segundo dados oficiais. De seus 4,7 milhões de habitantes, 50% são indígenas. Entre os maiores de 15 anos de idade, 18% são analfabetos. Os índices pioraram com o tempo: em 1990, 46% sofriam problemas de alimentação; em 2010, eram 48%.

A tarefa, daqui para a frente, não será nada simples. O movimento indígena terá de reunir cerca de um milhão de assinaturas para poder participar com sua candidata, como independente, nas eleições. Será uma maneira de medir o peso dos quadros do EZLN para além de Chiapas, de verificar o quanto aquilo que lhe resta é de mera simpatia retórica ou apoio fiel. González afirma que os subcomandantes não participarão da campanha. É difícil acreditar, porém, que uma pessoa como Marcos, agora Galeano, que atrai as atenções mesmo em silêncio, queira ficar à parte do processo.

— Não é contraditório que o EZLN utilize um sistema que é rechaçado por ele próprio?

— Sim. Pode ser, admite González. — Mas queremos entrar na festa dos ricos, do pessoal de cima, que são essas eleições, uma orgia onde se jogam todos os seus interesses. Queremos entrar nessa festa para estragá-la, queremos esse espaço porque não temos nenhum outro.

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