A militante anti-aborto recrutada por Temer para a Secretaria de Mulheres
Fátima Pelaes disse que sua posição pessoal não vai interferir no exercício do cargo Ex-deputada é autora de projetos como o da licença maternidade para mães adotivas
No emocionado discurso que fez em 2010 contra o aborto na Câmara dos Deputados, mesmo em casos de estupro, a ex-deputada federal Fátima Pelaes (PMDB-AP) disse em certo momento: “Prefiro pecar pelo excesso do que pela omissão”. Foi uma das poucas declarações objetivas da socióloga – nomeada nesta terça-feira por Michel Temer para a Secretaria de Políticas para Mulheres – na discussão sobre o Estatuto do Nascituro em que revelou publicamente que nasceu, ela própria, de um abuso sexual sofrido pela mãe. Pelaes comoveu as pessoas ao contar que viveu até os três anos na penitenciária em que sua mãe cumpriu pena por assassinar o marido depois de encontrá-lo em casa com a vizinha.
“Se ela tivesse abortado, eu não estaria aqui”, justificou-se naquela Casa laica ao embasar sua visão de que o direito da vida “está nas mãos de Deus” e que “dá-se um jeito” de seguir adiante após uma violação. Oito anos antes, no entanto, sua posição na Câmara, onde atuou por mais de duas décadas representando o Amapá, era oposta. Na mesma comissão feminina de que faz parte hoje e que indicou seu nome ao presidente interino, Pelaes defendia o direito da mulher a decidir sobre o próprio corpo e lutava para que aquelas que desejassem interromper uma gravidez indesejada pudessem fazê-lo. Naquela época, tampouco omitia suas opiniões, mas pensava radicalmente diferente.
De feminista radical, a escolhida de Temer para encabeçar a secretaria que substitui no Governo interino o extinto Ministério da Mulher passou a defender “a vida desde a concepção” e a “família tradicional”. Seu giro ideológico coincide com sua conversão à Igreja Evangélica, em 2002, depois de um naufrágio no rio Amazonas. Em entrevista ao jornal da Casa Publicadora das Assembleias de Deus (CPAD), Pelaes conta que seu “encontro com Jesus” foi o que salvou sua vida na ocasião. “Já prestes a afundar, ouvi uma voz que dizia nitidamente: ‘Se creres, me chame com toda a tua força!”, relatou a socióloga que é presidente do núcleo feminino do PDMB desde 2011. Depois do naufrágio, afirmou ter colocado “o mandato [como deputada] à disposição de Deus”.
Da trajetória de Pelaes (57), no entanto, fazem parte projetos de lei relevantes. Os de maior destaque são a lei de 2009 que assegura condições básicas de assistência às mães presidiárias e seus filhos menores de sete anos e a lei de 2002 que garante licença maternidade às mães adotivas. Foi criticada, porém, em seu último mandato, concluído em 2014, porque votou contra um projeto do deputado Chico Alencar (PSOL-RJ) que propunha que homens e mulheres ocupando o mesmo cargo numa empresa não poderiam receber salários diferentes. Derrotada ao tentar se reeleger e 2015, Pelaes ficou até abril deste ano no cargo de diretora administrativa da Sudam (Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia), mas foi exonerada por Dilma depois que o PMDB rompeu com o governo.
Uma mancha em seu currículo é um escândalo sobre desvio de dinheiro público no Ministério do Turismo, em 2011, através da Conectur – uma empresa fantasma (que funcionava, na verdade, como Igreja Evangélica) e que teria destinado verba da pasta para sua campanha de reeleição. Fátima, que nega as acusações, é casada e tem um filho filiado ao PTN que atua como vereador em Macapá.
Nova secretaria nasce com polêmica
O discurso religioso e conservador de Fátima Pelaes foi um choque para especialistas em direitos da mulher e o movimento feminista, que se posicionaram contra sua nomeação. A polêmica ganhou força especialmente em um momento em que a Justiça brasileira investiga um caso de estupro coletivo de uma menor de idade no Rio de Janeiro. Além disso, é contrária `as pautas que buscam milhares de mulheres que saíram as ruas do país durante a Primavera Feminina.
Diante das reações, a nova secretaria se manifestou através de uma nota em que afirma que sua posição sobre o aborto "não deve afetar o debate de qualquer questão" frente à secretaria. "Sempre trabalhei de forma democrática para defender a ampliação dos direitos das mulheres. Em respeito a minha história de vida, o meu posicionamento sobre a descriminalização do aborto não vai afetar o debate de qualquer questão à frente da Secretaria de Políticas Públicas para Mulheres. A mulher vítima de estupro, que optar pela interrupção da gravidez, deve ter total apoio do Estado, direito hoje já garantido por lei", informou. Em entrevista ao jornal O Globo, Pelaes citou Dilma Rousseff ao falar do assunto: “Acabamos de ter uma presidente que acabou de sair e pensava diferente e não avançou porque a maioria da população não pensa assim”.
Ao Instituto Patrícia Galvão, organização social sem fins lucrativos voltada à comunicação e direitos das mulheres, a advogada Silvia Pimentel, afirmou que a decisão “é uma afronta”. “O Estado moderno democrático, que há centenas de anos estamos buscando, é um estado laico. E é um verdadeiro retrocesso se ela tiver sido indicada precisamente por um grupo religioso, no sentido de opor-se às bandeiras das mulheres”, disse a representante do Brasil no Comitê sobre a Eliminação da Discriminação contra a Mulher da ONU. Para Heloisa Buarque de Almeida, também entrevistada, é “um retrocesso gravíssimo defender o fim do aborto em caso de estupro”. “É querer voltar atrás em uma lei de 1940 que prevê uma das raras possibilidades de aborto legal. Essa postura do Temer é um verdadeiro escárnio com as mulheres e com as lutas feministas deste país”, declarou.
Mesmo antes de ocupar o cargo, a ex-deputada e socióloga participou na terça da primeira agenda oficial ao lado de Michel Temer. Ela dividiu a mesa com o presidente em exercício e com o ministro interino da Justiça, Alexandre de Moraes, em uma reunião com os secretários de segurança dos Estados para definir medidas de combate à violência doméstica.
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