“A Internet está nos tornando mais ignorantes e narcisistas”
Em livro, Andrew Keen ataca o lado sombrio da Rede Jornalista acusa 'web' de favorecer desigualdade, monopólios e vigilância
Todos calados. E extasiados perante o desfile do imperador. Até que um moleque se atreve a dizer o que todos veem: “Ele está nu!”. Andrew Keen se vê como aquele menino do conto de Andersen, só que 170 anos depois. E, hoje em dia, o relato é narrado ao contrário: nus estamos todos, por culpa do grande rei Internet. “É genial, eu mesmo a uso. E deixo isso claro em meia página. Entretanto, o resto do livro é dedicado aos senões…”, sorri. Ou seja, como a Rede favoreceu os monopólios, a desigualdade, o narcisismo e a vigilância, segundo o autor. São razões pelas quais, como diz o título do seu livro, The Internet Is Not the Answer (“a Internet não é a resposta”, inédito no Brasil).
É o terceiro livro que esse jornalista e escritor britânico (Hampstead, 1960) dedica ao lado sombrio da Rede, depois O Culto do Amador (ed. Zahar, 2009) e Vertigem Digital (ed. Zahar, 2012). Tanto que ganhou fãs, críticos e a fama de grande polemista contra a rede mundial de computadores. E, com a mesma virulência, acusa o Vale do Silício e seus gurus (com nomes e sobrenomes) de terem se aproveitado de nós para enriquecer enquanto nos prometiam um mundo melhor, mais livre e mais democrático. Se 90% dos norte-americanos consideram que a Internet foi benéfica para a sua existência, segundo um estudo de 2014 do Centro de Pesquisas Pew, citado no próprio livro, Keen se diverte remando contra a corrente.
E com um sorriso aceita outro desafio: resumir sua tese em um minuto. “Há quatro chaves. A Internet está agravando a desigualdade entre ricos e pobres; está contribuindo em longo prazo para a crise do desemprego, com máquinas inteligentes que substituem inclusive o trabalho especializado da classe média; está criando uma economia da vigilância, onde somos o produto, transformados em dados que Google e Facebook vendem a outras companhias para fazer publicidade. E está nos tornando mais mal informados, mais ignorantes e narcisistas”. Quase nada.
Para defender essa conclusão tão polêmica, Keen emprega, ao longo de 379 páginas (50 de bibliografia), relatos, dados, entrevistas, reflexões e recapitulações históricas. “O principal desafio era fazer um livro acessível, divertido e bem argumentado. Não escrevo para acadêmicos”, observa. Assim, em um parágrafo ri do chefão da Amazon, Jeff Bezos, em outro cita um estudo da ONU segundo o qual em 2013 havia mais pessoas com celular (seis bilhões) do que com acesso a uma privada (4,5 bilhões), e num terceiro recorda a origem da Rede.
“A Internet nasceu como pesquisa acadêmica financiada com recursos públicos. Os objetivos poderiam ser resumidos em enfrentar a União Soviética e gerar um mundo melhor. Mas em 1991 começou sua comercialização”, conta Keen. E, com ela, o elenco de problemas que ele lamenta. “Se pudesse voltar atrás, iria a meados dos anos noventa, quando começou a se oferecer todo o conteúdo grátis. E a 2001, quando o Google estabeleceu o seu modelo de negócio”, acrescenta. O escritor acusa o buscador de hipocrisia: no início, se opunha à publicidade. Hoje, nos vendeu a ela.
Mas por que um cidadão deveria se queixar de serviços gratuitos e úteis como os do Google e Facebook? “O objetivo do Google, como disse o próprio Eric Schmidt [ex-diretor-executivo], é nos conhecer melhor que nós mesmos. E para isso eles têm o YouTube, o Google Maps, o Gmail, o Android, os carros sem motorista… Não se trata do Grande Irmão de 1984, de Orwell, e sim de nos vender coisas. Somos ratos trancados numa gaiola, rodeados por estas grandes companhias e por anunciantes”, diz Keen, quem também recorda as armadilhas fiscais usadas por Facebook, Apple, Google, Amazon e demais titãs 2.0.
Além de examinar esses colossos, seu livro foca também os mais de três bilhões de internautas do planeta. E as conclusões não são menos inquietantes: “Esquecemos como escutar, estamos encerrados em nós mesmos, e mais sozinhos do que nunca. A Rede expôs algumas das nossas piores características. Se não existisse, continuaríamos tendo Trump e gente insultando os muçulmanos. Mas o fato é que é a plataforma perfeita para o racismo e a misoginia, para que o ódio difunda sua metástase”. Keen considera que a Internet fracassou também em sua promessa de um iluminismo global, e que, se fosse vivo, Voltaire estaria enormemente decepcionado.
Ele também se sente frustrado: diz que seu livro foi bem recebido e sente falta da polêmica. Então, aí vai: para começar, Keen usa um smartphone e trabalha para o Vale do Silício. Além disso, não acha arrogante expressar unicamente ideias cortantes? “Para um polemista que assume posições fortes, não há espaço para a dúvida.” Mais: dizem que seu livro é apenas um copy-paste de polêmicas e teorias alheias, e que a Internet amplia a meritocracia e as oportunidades para todo mundo. “É uma crítica parcialmente justa. Não escrevo nada que não tenha sido dito antes. Não sou um pesquisador original, o que faço é juntar tudo. Não conheço muitos outros livros que resumam tantos argumentos em um formato legível e coerente.”
Portanto, seu objetivo é fazer o grande público pensar? “Meu objetivo é vender livros, estar no debate público, ser convidado para televisões e elucidar aspectos que estão ocultos.” Talvez, de passagem, também mudar as coisas. Já no final da obra, Keen propõe uma série de soluções que passam por um maior controle governamental, investigações como as que a UE cada vez mais promove contra os gigantes da Internet e a mobilização dos próprios especialistas, acadêmicos e grandes companhias para corrigir as falhas do sistema. Sobre isso escreverá seu próximo livro. Já que a Internet não é a resposta, tentará ele mesmo oferecê-la.
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