Monja Coen: “A corrupção está dentro de nós”
Monja budista mais pop do Brasil fala sobre o impeachment de Dilma e a intolerância política Para ela, num Estado laico como o nosso é "absurdo" que parlamentares "votem em nome de Deus"
Vestida de branco dos pés à cabeça, Cláudia Dias Baptista de Souza, 69 anos, se misturou à multidão que ocupava a avenida Paulista no dia 18 de março para se manifestar contra o impeachment da presidenta Dilma Rousseff. Apenas a carequinha denunciava que estava ali a líder budista mais pop do Brasil, a Monja Coen, que há 33 anos deixou a vida regada a sexo, drogas e rock n' roll para se dedicar ao zen budismo. Sorridente, com um semblante tranquilo de observadora, ela decidira participar como "pessoa física", sem o habitual samue (o manto dos monges), de sua primeira manifestação desde o início da conturbada crise política que o Brasil atravessa desde 2015. Alguns a reconheceram e pediram para tirar fotos. Mas, nas redes sociais, nem todos ficaram felizes ao saber que a religiosa tinha escolhido um lado.
A política não é tema das conversas dentro do templo soto zen budista que lidera no Pacaembu, bairro nobre da região central de São Paulo. Mas, fora dele, ela sentia que era hora de se manifestar. "Eu sou contra o impeachment. No momento em que eleições legitimamente realizadas estão sendo questionadas, estamos dando um retrocesso político", respondeu, semanas depois, ao receber o EL PAÍS em sua casa para uma entrevista sobre atitudes zen em meio à tensão social atual.
Cláudia se tornou Coen (Co quer dizer só e En significa círculo, ou seja, um só círculo) em 1983, quando fez votos monásticos e entrou para o Mosteiro Feminino de Nagoia, no Japão, onde viveu por mais de uma década. Ex-jornalista, prima dos Mutantes Sérgio Dias e Arnaldo Dias Baptista, ela descobriu aos 36 anos, em Los Angeles, "essa coisa maravilhosa que é a meditação", quando fazia uma reportagem sobre sociedades alternativas nos Estados Unidos. Deixou para trás um passado agitado, que inclui um casamento aos 14 anos (e uma gravidez e divórcio aos 17), uma fase de groupie da banda de rock Alice Cooper, uma prisão na Suécia por tráfico de LSD e uma tentativa de suicídio.
A partir dali abraçou um estilo de vida que lhe trouxe serenidade e uma vocação. Nunca escondeu seu passado por ver em sua trajetória o exemplo prático de como é possível virar qualquer vida do avesso e recomeçar. Se tornou a primeira mulher a ocupar a presidência das Seitas Budistas no Brasil, se casou com um monge (de quem se separou anos depois), escreveu livros sobre a vida zen e hoje se define como uma "monja e dona-de-casa", que roda o Brasil dando palestras sobre felicidade e vê alegria em coisas triviais, como caminhar no parque com seus três cachorros e votar. "Me alegra poder dar meu voto. Eu vivi muito tempo numa época em que não podíamos votar". Na definição da filha Fábia, 52 anos, é "uma figura", "iluminada e de bem com a vida".
E é justamente só (como diz o nome que ganhou do professor japonês) que assume sua posição política. Antes de continuar a entrevista, faz questão de esclarecer: essa é a sua opinião pessoal e não representa a comunidade que lidera, que tem liberdade para pensar como quiser. Também esclarece que não é filiada a nenhum partido político, não vota sempre no mesmo grupo, nem possui uma ideologia partidária. E que "entende muito pouco desses assuntos". Razões pelas quais não vê como quem pensa diferente dela deveria se sentir incomodado com sua opinião, já que conviver com pessoas que pensam diferente é, para ela, algo que deveria ser "enriquecedor" e, mais: necessário.
"Nós não falamos de política aqui. Mas eu tenho notado que as pessoas ficam muito virulentas quando vão discutir o seu ponto de vista... Há muitas pessoas intolerantes hoje. Teve uma senhora que frequentava o templo e veio aqui chorando me dizer que não poderia mais ser guiada por mim porque soube que eu me manifestei publicamente sobre o tema. Olha isso que interessante... Aí tem gente que diz: 'Ah, mas a monja não pode ter uma opinião política'... Isso não é verdade. Todos temos. Nós estamos numa democracia e existem várias formas de pensar", diz.
Para ela, há certos momentos em que é preciso se posicionar no mundo. “Cada um de nós tem que assumir aquilo que faz, aquilo que é e aquilo que pensa. E assumir, com isso, as consequências", ponderou, sem rodeios. Por isso lembrou que não falava em nome de mais ninguém a não ser dela mesma.
Circo político versus Estado laico
Para a missionária budista, o Estado ser laico é fundamental para a democracia brasileira, o que a faz achar "um completo absurdo" o fato de deputados federais citarem mais a palavra Deus que as acusações contra Dilma ao votarem por sua destituição. "É um absurdo falarem 'estou aqui votando em nome de Deus', porque o nosso Estado é laico. É importante que seja laico. Nem todos os evangélicos, os católicos, os budistas, enfim, são a favor do impeachment... Então você não pode falar em nome de todas essas pessoas sem consultá-las antes", disse, em referência à aprovação, pela Câmara Federal, da continuidade do processo contra Dilma no dia 17 de abril.
"O que eu vi naquela votação na Câmara foi um circo. E pensei depois: que bom que eu estou do lado daqueles que perderam essa votação. Porque eu não gostaria de estar do lado daqueles que ganharam. Porque eu teria muita vergonha. Pois aquilo não foi honesto."
Cisão da sangha
Coen se diz especialmente preocupada com a divisão do Brasil e o clima de intolerância. Uma das poucas referências políticas que faz quando se dirige à comunidade budista é sobre a importância de não deixar com que esse momento de crise —que é passageira, frisa ela— divida "famílias, separe amigos, destrua comunidades". "Buda, ele dizia que um dos crimes maiores que podia ser cometido era a cisão da sangha, divisão da comunidade. Que é o que a gente está vivendo no Brasil. Que lamentável. Seja qual lado que ganhe ou que perca todos nós perdemos e ganhamos juntos."
Para a missionária, neste sentido, "todos os lados" da história estão errados, sejam governistas ou opositores. "Nós não precisamos destruir o outro para provar que temos capacidade. E nisso, todos eles estão na mesma panela", observou, reprovando o discurso do "nós contra eles", tão presente em falas políticas. "Eu não gosto da palavra luta, por exemplo, e muitos partidos políticos usam isso. Eu não acho que a gente deve lutar por coisa alguma. Eu acho que a gente deve trabalhar para construir algo", completa, retomando o tom zen do papo.
A corrupção dentro de nós
Monja Coen fala frases duras, gesticula bastante, mas não eleva o tom da voz. Mantém o olhar suave mesmo nas vezes em que usa palavras como "hipocrisia" ao falar dos que usam a bandeira "contra a corrupção" para destituir o Governo. "Então somos todos contra a corrupção e os corruptos. E os juízes quem são? São esses senhores que têm as perninhas presas em escândalos", diz. Também não altera o timbre ao dizer que a "mídia brasileira não é democrática" e "manipula a população ocultando um dos lados da história".
Foi um livro de Léon Trotsky (não se lembra qual), que fazia menção ao combate à corrupção, que a motivou a se tornar monge nos anos 80. O livro apontava justamente que qualquer mudança social positiva só seria possível se a transformação fosse interna."Se a mudança não for do coração, interna de cada um de nós, não vão ser partidos políticos, sistemas econômicos que vão fazer a diferença. Porque nós somos corrompíveis. Todos nós. Em níveis diferentes. E como é que você pode acessar um nível de incorruptibilidade? Como fazer isso através de uma visão clara da realidade de que estamos todos e tudo interligados? Como é que eu mexo nisso sem ódio, sem criar atrito? Isso, pra mim, é uma arte. É uma arte de fazer política. E nós ainda não chegamos lá."
Desapego
Questionada, porém, sobre as acusações de corrupção que pesam contra o PT e contra o Governo Dilma, a monja relativiza o poder que "um presidente tem dentro de um jogo político que inclui muitos interesses" e o quão reais são as acusações. Não se aprofunda no assunto, mas diz não "botar a mão no fogo por ninguém". Apesar disso, nega ter medo de admitir estar errada, mais uma vez recorrendo ao budismo ao avaliar essa hipótese.
"Eu acredito na Dilma. Acho que é uma senhora honesta. Acho que ela queria fazer coisas pelo bem do Brasil e está sendo impedida porque não soube fazer as barganhas políticas. Mas posso estar errada? Posso. E se ficar provado que não era isso, vou dizer: eu me enganei. Porque eu descobri uma coisa maravilhosa que é o zen budismo, que me tira o apego de tudo, inclusive de um ponto de vista. Eu posso errar. Eu não sou uma ativista política. Eu apenas tenho uma opinião política."
— E, diante de todo esse cenário de caos político, como a senhora tem conseguido se manter zen?
Ela recebe a pergunta com uma gargalhada. Pensa alguns segundos e responde:
— A vida continua, apesar de tudo e apesar de todos os aspectos e revezes. Eu continuo meditando, continuo fazendo o meu trabalho. Esse é um dos princípios básicos do budismo: não há nada fixo, nada permanente. Então neste momento que estamos atravessando essa turbulência, vamos apertar nossos cintos, vamos controlar nossas finanças, manter a calma… Porque sabemos que a turbulência passa. Não vamos fazer disso essa coisa tão negativa, como se o mundo fosse acabar, porque não vai. Eu ainda acredito que nós podemos construir uma cultura de paz. Uma cultura de respeito. Isso tudo vai passar...
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