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Comissão de especialistas acusa Governo mexicano de obstruir o ‘caso Ayotzinapa’

Grupo afirma em seu relatório final que o Executivo deixou de investigar a conduta de alguns funcionários públicos e aponta para o Exército

Jan Martínez Ahrens
Manifestação pelas vítimas de Iguala, neste domingo na Cidade do México.
Manifestação pelas vítimas de Iguala, neste domingo na Cidade do México.EDGARD GARRIDO (REUTERS)

A noite de Iguala não termina. O desaparecimento e morte dos 43 estudantes de Ayotzinapa, no México, volta a explodir nas mãos do Governo de Enrique Peña Nieto. O Grupo Interdisciplinar de Especialistas Independentes (Giei), após a recusa do Executivo em prorrogar sua investigação, despediu-se com um relatório que questiona não apenas a versão oficial sobre o massacre como também a própria credibilidade do Estado mexicano. Ao longo de suas 608 páginas, a equipe, ligada à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), detalha os atrasos, obstruções e bloqueios que sofreu. E, acima de tudo, denuncia que, além do prefeito de Iguala e seus policiais municipais, a “conduta negligente dos funcionários públicos” ficou sem investigação. É um projétil que tem como alvo o intocável Exército mexicano.

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Num país acostumado a terremotos, a despedida e encerramento do Giei tem magnitude desconhecida. Quando o Governo de Peña Nieto, em plena crise de confiança, abriu as portas a essa comissão para que desse auxílio técnico no caso Ayotzinapa, o gesto foi interpretado como o início de uma nova era no sangrento capítulo dos desaparecimentos. A equipe, formada por cinco personalidades ibero-americanas conhecidas por sua luta a favor dos direitos humanos, parecia assegurar a transparência e as boas práticas na investigação.

Seu trabalho começou em março de 2015. Assim como as famílias das vítimas fizeram, não demorou para se afastar da linha oficial. O rompimento ficou evidente em setembro do ano passado, quando a comissão apresentou seu primeiro relatório. Embora admitisse o conluio entre o cartel Guerreros Unidos e a Polícia Municipal de Iguala, sua investigação ia muito além. Para escândalo dos setores mais conservadores, questionava o papel do Exército. E, para examinar as causas de sua passividade na noite de Iguala, requisitava a produção de novas provas e o interrogatório do 27º Regimento. O pedido foi cabalmente rejeitado. Pelo alto comando e pelo próprio presidente. Ninguém teve dúvida quanto ao motivo: numa nação imersa em brutal guerra contra o narcotráfico, com mais de 100.000 mortos nas costas, o Giei pretendia abrir uma porta para o desconhecido, para uma possível incriminação da coluna vertebral do Estado. E o relatório reservava outras surpresas. Com base no trabalho de um especialista internacional, negava que os corpos dos estudantes tivessem sido eliminados numa fogueira no lixão de Cocula. Essa hipótese, embora afetasse apenas um ramo secundário do sumário, representava um enorme desafio à versão oficial. Se não tivesse havido o incêndio no depósito de lixo, então o testemunho dos assassinos que o haviam descrito perderia a credibilidade. E a investigação como um todo, como uma árvore infestada, ficaria comprometida. Mais uma vez, explodiu uma bomba. E mesmo que meses depois um grupo de especialistas em fogo tivesse voltado à hipótese inicial, a confiança já ficara irremediavelmente prejudicada. A saída da Giei tinha passado a ser somente questão de tempo. Quando chegou o momento de prorrogar sua permanência no México, o Executivo, sem perder a pose, preferiu lhe dar a passagem de volta para o próximo dia 30.

A resposta foi o relatório apresentado na manhã deste domingo na Cidade do México. Sua leitura leva ao nó górdio do caso: Ayotzinapa reflete o fracasso do Estado mexicano, e não apenas a barbárie do narcotráfico. O texto, embora sem dizer isso explicitamente, circunda esse ponto. Nenhum detalhe escapa da crítica. Aos olhos dos especialistas, a própria investigação revela os males que assolam o país. Lentidão processual, burocracia paralisante, excessivo formalismo, falta de provas objetivas, pressa nas prisões, ausência de garantias, problemas na perícia, fragilidade dos indícios incriminatórios, vazamentos seletivos... O rosário de males da descrição feita pelo Giei seria uma paulada no sistema policial mexicano, mas lhe faltaria combustível, se não fosse por dar um passo a mais e entrar no terreno da acusação. “A investigação teve dificuldades que não são devidas de forma exclusiva à mera complexidade do caso. A lentidão nas respostas às solicitações do Giei, a demora na produção de mais provas, as respostas formais e não substanciais a muitas das inquietações, a não investigação de outras linhas de investigação não podem ser lidas como simples obstáculos imprevistos ou parciais. Mostram barreiras estruturais”, destaca o relatório.

Para os especialistas, esse obstrucionismo aumentou conforme avançavam as investigações, até o ponto de sofrer “um claro bloqueio”. São citados inúmeros exemplos. Entre eles, destaque para a informação relativa ao Exército. “Independentemente de o Grupo não ter podido entrevistar os militares do 27º Batalhão que estiveram presentes nos fatos [...] Os relatórios de inteligência, as anotações, as fotografias e os vídeos ligados aos fatos não foram incorporados à investigação”, afirma o texto. Nessa linha, o Giei sustenta que no caso Ayotzinapa “a conduta negligente dos funcionários públicos praticamente não foi investigada”, e isso apesar de que “determinados agentes do Estado tenham posição de garantia da segurança, como é o caso das forças policiais e militares, que têm o dever de proteger os cidadãos e cuja omissão pode constituir violação dos direitos humanos”.

Em sua despedida, o Giei lamenta que seu trabalho tenha sido usado como elemento de “polarização” política e atribui parte da polêmica que o envolveu ao medo de determinados funcionários públicos, que viram ser questionado seu trabalho, e também a uma “atitude soberanista” frente a um “grupo de estrangeiros”. Como última recomendação, lembra que a “comunidade internacional” pode ajudar na investigação, mas que o papel central cabe ao “México, a seu povo e suas instituições”. No próximo sábado o Giei deixará sua missão no país.

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