Guerra interna no peronismo começa antes mesmo da vitória
Daniel Scioli já deu sinais de uma possível virada na política econômica
O peronismo, que ocupa o Governo da Argentina há 13 anos, é favorito, mas ainda não venceu as eleições do próximo domingo. No entanto, já começam, internamente, as disputas a respeito de como exercerá o poder. Daniel Scioli, o candidato oficial, já deu sinais, ainda que tímidos, de uma virada na política econômica praticada pela atual presidenta, Cristina Fernández de Kirchner. Scioli sinaliza para uma política econômica mais ortodoxa. E os kirchneristas, preocupados, já preparam a resistência contra essa mudança no Congresso e na província de Buenos Aires, seu principal bastião.
Com exceção de dois breves mandatos, o de Raúl Alfonsín (1983-1987) e o de Fernando de la Rúa (1999-2001), a reconstituída democracia argentina tem sido dominada pelo peronismo. Todos os conflitos importantes de poder, inclusive os confrontos entre esquerda e direita, ocorrem dentro desse movimento autóctone, inclassificável dentro dos parâmetros internacionais. E isso volta a acontecer agora.
À sua maneira, sem se confrontar abertamente com a presidenta, Scioli tem passado uma mensagem, em especial para o mercado, por meio de intermediários e de encontros com investidores, de que irá mudar a política econômica do país. Reservadamente, isso tem sido ventilado com clareza pelo seu círculo mais próximo. Ao mesmo tempo, um de seus aliados, o governador de Salta, Juan Manuel Urtubey, provável ministro das Relações Exteriores, declarou a investidores, em Nova York, que será feito um acordo com os “fundos abutres” e que serão retomadas as vantagens concedidas para investimento na Argentina. “Sei qual é a sua preocupação”, disse Scioli, na semana passada, dirigindo-se aos maiores empresários do país, bastante críticos em relação à política econômica kirchnerista.
Dentro do peronismo, ninguém ataca Scioli diretamente em plena campanha eleitoral. Mas a resposta também foi muito clara. Aníbal Fernández, número dois do Governo, kirchnerista de carteirinha e candidato ao governo da província de Buenos Aires, que tem o tamanho da Itália, partiu para o ataque contra o sciolista Urtubey, acusando-o de “dizer a mesma coisa que Macri”, o líder da oposição, no que se refere ao acordo com os “fundos abutres”.
Muitos kirchneristas temem que Scioli, que entrou na política no período liberal do peronismo, favoreça os grandes empresários
No fundo, trata-se de uma luta pelo poder, mas que é também de ordem ideológica: muitos kirchneristas temem que Scioli, que entrou para a política pelas mãos de Menem no período neoliberal do peronismo, promova uma virada no sentido da adoção de uma política mais favorável aos grandes empresários, com a aplicação de um ajuste talvez tão forte como o adotado no Brasil.
Um kirchnerista resume da seguinte maneira a luta pelo poder que está por trás, e que começou em agosto, quando o sciolista Julián Domínguez, amigo do papa Francisco, disputou as primárias com Aníbal Fernández e perdeu: “O que esteve em jogo nas eleições internas do peronismo foi se Scioli controlava também a província, com Domínguez, ou se Cristina manteria o controle, com Aníbal. Cristina ganhou. E aí que iremos resistir”. Um sciolista, por sua vez, tenta não dramatizar a situação, comentando que o peronismo costuma se acomodar ao dirigente do momento, que, no caso, será Scioli. “O peronismo é isso. Que ninguém se engane, dentro de dois meses Aníbal será o mais sciolista de todos. Já vimos isso acontecer inúmeras vezes”, brinca.
De qualquer maneira, a preocupação nas fileiras do kirchnerismo, que mesmo assim trabalha pela vitória de Scioli pois quer manter o poder, é significativa. Dirigentes do La Cámpora, o movimento mais próximo da presidenta, como o deputado Juan Cabandié, filho de desaparecidos políticos, deixam isso claro: “Cristina continuará sendo a nossa referência”.
Scioli procura estabelecer a quadratura do círculo, expressa em seu slogan “continuidade com mudanças”. Sozinho, jamais conseguiria ganhar as eleições. Precisa dos votos do kirchnerismo, mas, ao mesmo tempo, precisar mostrar que fará mudanças. Tudo isso, até o próximo domingo. Depois, caso vença, todos saberão quem é o verdadeiro Scioli, como dizem os seus apoiadores.
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