A bisbilhotice (frutífera) das correspondências alheias
'Correio IMS' disponibiliza cerca de 100 cartas trocadas entre personalidades brasileiras
Foi-se o tempo em que cartas, com envelope e selo, eram moeda corrente. Na atual época de e-mails, posts em redes sociais e até um aplicativo que avisa o remetente se determinada mensagem foi lida pelo destinatário, recebida mas não lida ou apenas enviada com sucesso, talvez só os mais velhos sintam falta da escrita à mão e da textura do papel. Mas, especialmente em tempos de internet e Big Brother, há algo que quase ninguém dispensa: uma boa bisbilhotice na intimidade alheia – nos termos da lei, claro.
Pensando nessa curiosidade frutífera que nos permite ler cartas de valor literário, biográfico ou histórico que não foram endereçadas a nós, o Instituto Moreira Salles lançou no último 11 de agosto um portal – o Correio IMS – que disponibiliza cerca de 100 correspondências trocadas entre personalidades brasileiras ou então estreitamente ligadas ao Brasil. As cartas, vindas de fontes variadas, publicadas ou inéditas, foram organizadas de acordo com seus remetentes e destinatários, o ano e o local onde foram escritas e os temas de que tratam. Por fim, foram digitalizadas e ganharam um breve texto explicativo, além de interrelacionadas, para que os interessados deixem a curiosidade fluir. “Cartas ajudam a compor a identidade de um povo” e “por serem íntimas, costumam surpreender quando vêm a público”, defende o site.
Com razão. É um deleite saber através de um telegrama breve e nervoso de Tom Jobim que o músico ficou arrasado depois da histórica edição do III Festival da Canção, de setembro de 1968, quando sua música Sabiá desbancou a favorita do público (Pra não dizer que não falei das flores, de Geraldo Vandré) e terminou vaiadíssima na final da fase brasileira. Não pela baixa em seu ânimo, que conforme Jobim pedia, Chico Buarque, letrista de Sabiá e o receptor do telegrama, remediou com sua presença na grande final internacional, mas por interceptarmos um desabafo pessoal. Ou então que Chico, destinatário de outra carta, desta vez de Vinícius de Moraes, quem se dirigiu a ele no texto com um alegre “chiquérrimo!”, pôs a mão na letra de Valsinha quando estava em Mar del Plata, em 1971, justificando: “Claro que a letra é sua, eu nada mais fiz que dar uma aparafusada geral. Às vezes o cara de fora vê melhor estas coisas”.
Também ajuda a ligar os pontos que desenham um país visto do exterior ficar sabendo que os escritores Fernando Sabino e Clarice Lispector eram amigos que se correspondiam – ele, de Nova York (onde era funcionário do consulado brasileiro), e ela, de Berna (onde viveu com o marido em sua carreira diplomática). Em 1946, ele se desculpa desesperadamente por ter demorado para responder uma carta dela, em que percebe-se que Clarice havia perguntado novidades do Brasil. O pouco que ele sabe relatar passa por um estudante morto no Rio de Janeiro quando, no largo da Carioca, “choveu bala sobre os comunistas”. “Tenho xingado muito o Getúlio”, diz o autor de O menino no espelho, depois de citar o “Pajé” (apelido do jornalista Otto Lara Rezende), quem andava tomando aos domingos “porres gigantescos, colossais”. Ou que Ziraldo mandava postais a Carlos Drummond de Andrade, como conta o blog do projeto.
Fofocas postas de lado, a História do Brasil – aquela que se escreve com letra maiúscula – também não fica de fora do saboroso material, que inclui a histórica carta do escrivão da frota de Pedro Álvares Cabral em sua viagem às nossas terras, Pero Vaz de Caminha, a Dom Manuel I. “Tenha certeza de que não porei aqui, seja para embelezar ou enfear, mais do que aquilo que vi e me pareceu”, promete o cronista ao rei de Portugal. E assim fez ao falar dos brasileiros nativos: “Eram eles pardos, todos nus, sem coisa alguma que lhes cobrisse suas vergonhas. Nas mãos traziam arcos e setas. Vinham todos rijamente sobre o batel. Nicolau Coelho lhes fez sinal que pousassem os arcos. E eles os pousaram”.
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