Recep Erdogan, o rei está nu
O islâmico que modernizou a Turquia está numa cruzada para tornar o país presidencialista
A trajetória do presidente da Turquia, Recep Tayyip Erdogan (Istambul, 1954), durante os últimos 20 anos foi inabalável: foi o prefeito de Istambul que levou os serviços públicos aos bairros pobres; o político islamita que conseguiu controlar os militares e seus impulsos golpistas; o estadista que abriu as negociações para aderir à União Europeia; o primeiro-ministro que liderou o período mais estável da democracia turca e que, depois disso, foi eleito chefe de Estado. Qualquer um em seu lugar se afastaria para desfrutar os louros da glória.
Mas para Erdogan isso não basta. Quer que a Turquia adote o regime presidencialista, encabeçado por si mesmo —para isso precisava que seu partido obtenha ampla maioria nas eleições deste domingo— para continuar moldando o país à sua imagem e semelhança. Por isso não hesita em proclamar em público suas opiniões: quantos filhos os turcos devem ter (“pelo menos três”), que jornais devem ou não ser lidos; por que o Twitter e outras redes sociais devem ser censuradas (“são a pior ameaça à sociedade”).
Na visão de seus seguidores, é um líder como nunca houve. É adorado, aclamado. Meia Turquia o ama. E a outra metade o odeia. Como pôde chegar a essa situação um líder cujo “islamismo moderado” era usado pelo Ocidente como modelo para todo o Oriente Médio?
“No começo, o Partido da Justiça e do Desenvolvimento (AKP, a sigla islâmica que governa a Turquia desde 2002) era dirigido em equipe. Mas Erdogan foi eliminando todos que pudessem rivalizar com ele. Ou saíram ou foram relegados a posições secundárias. E com isso construiu um sistema no qual é cada vez mais poderoso. Mas também no qual está cada vez mais sozinho”, argumenta Cengiz Aktar, cientista político e antigo defensor do AKP.
O momento em que a mudança ocorreu é tema de discussão: há quem diga que começou em 2008, quando, depois de livrar por pouco o AKP de um processo de banimento no Tribunal Constitucional, Erdogan resolveu acabar com a velha guarda laica do Estado, substituindo-a por seus partidários. “Eliminou todos os mecanismos de controle do sistema político turco”, diz Aktar. “Nada funciona, nem o sistema judicial nem o aparato de Estado. Existe apenas um órgão de decisão: o próprio Erdogan.”
Para outros, como Mustafa Akyol —colunista e até quatro anos atrás um dos maiores apologistas do islamismo moderado turco— a mudança chegou em 2011, depois da terceira maioria absoluta do AKP: “Quando Erdogan estava fraco, precisava de certa legitimação face aos não islâmicos e ao Ocidente. Agora que tem todo o poder, já não precisa dela, e por isso abandonou suas políticas mais liberais e se tornou mais arrogante e intolerante. O poder corrompeu sua parte melhor.”
Isso é bem conhecido por Reha Çamuroglu, ex-assessor de Erdogan: “Antes chamava o tempo todo seus assessores e nos pedia nossa opinião, mas desde 2008 começou a pensar que podia gerir tudo sozinho. Mostrar-lhe uma ideia contra sua opinião se tornou motivo para ser sacado do núcleo de poder”. Esse “núcleo de poder”, formado apenas por membros da mais absoluta e comprovada lealdade a Erdogan, é que se encarrega de transmitir ao Conselho de Ministros as linhas mestras da política turca, embora, relata Çamuroglu, alguns assuntos, como a política em relação à Síria, sejam controlados “pessoalmente” por Erdogan, mesmo que constitucionalmente a maioria das tarefas executivas caiba ao Governo, e não à chefia de Estado.
Sua personalidade irascível torna “muito difícil” trabalhar com Erdogan, diz o ex-colaborador, e por isso seus antigos assessores terminaram por abandoná-lo, deixando ao seu redor somente, nas palavras de Mustafa Akyol, “um círculo de aduladores que o veneram de modo quase religioso e sabem apenas dizer sim para tudo”. Para cair em suas boas graças, os membros do AKP e seus partidários o chamam de “grande maestro”, “sol da nossa era” ou “califa”.
O presidente turco formou ao seu redor, segundo um ex-assessor, “um círculo de bajuladores que sabem apenas dizer sim para tudo”
Entre os integrantes de sua equipe de confiança se destaca Yigit Bulut, velho jornalista crítico ao AKP que tem a fúria típica dos convertidos. “Há anos tenho duas pistolas e centenas de balas [disse recentemente numa entrevista], as forças [inimigas] externas ou internas não conseguirão pôr as mãos em nosso presidente sem antes me matar”. Bulut ganhou fama por suas teorias da conspiração, segundo as quais está em marcha um complô para assassinar Erdogan “por meio de telecinese e outros métodos”. Afirmações que, embora tomadas como piada pelos meios de comunicação internacionais, não são desprezadas pelo AKP —afirmam ter provas de “operações de inteligência” contra a economia turca e a vida do presidente— e exemplificam o ambiente que reina no palácio.
Um dos mais de mil cômodos da mansão que Erdogan mandou construir no ano passado abriga um laboratório para analisar a presença de venenos e material radioativo na comida do presidente porque, segundo explica seu médico, Cevdet Erdöl, “os assassinatos já não são executados com armas, e sim envenenando secretamente a comida”. Esta obsessão pelo controle também se estende a outras salas, como o centro de vigilância, no qual, por meio de 143 monitores, Erdogan pode ter acesso aos circuitos fechados de TV do país todo e às imagens dos drones de segurança, assim como ao monitoramento do tráfego de Internet e de telefonia.
Akyol liga esse modo de pensar ao ensimesmamento do poder: “Quanto mais tempo você governa, mais erros comete e, consequentemente, mais críticas recebe. E em vez de olhar para si mesmo e admitir seus erros, Erdogan se diz: tem que haver uma conspiração por trás dos protestos”.
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