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Uma nova primavera nos EUA

A maior economia mundial volta a pulsar. Perto do pleno emprego, gaba-se da força do dólar, se aproxima da autossuficiência energética e afugenta os fantasmas da recessão

Marc Bassets
Campo de extração petrolífera pelo método ‘fracking’, na Califórnia.
Campo de extração petrolífera pelo método ‘fracking’, na Califórnia.Getty

Os Estados Unidos saíam de uma década inteira de crise e pessimismo, um novo presidente havia chegado à Casa Branca determinado a romper a inércia, a economia ganhava impulso, e os cidadãos recuperavam a confiança. “Volta a amanhecer na América”, anunciava a voz em off num dos anúncios mais famosos da história eleitoral. Com imagens de cidadãos trabalhando ou com suas famílias, o narrador dizia que, graças ao presidente, jamais tantos homens e mulheres haviam estado ocupados, que a inflação havia caído pela metade, e que os norte-americanos voltavam a adquirir imóveis.

O presidente era Ronald Reagan, herói republicano, e o anúncio foi ao ar em 1984, o ano da sua reeleição. Mas a mensagem valeria para o democrata Barack Obama em 2015. Depois de uma crise financeira que evocou o fantasma da Grande Depressão dos anos trinta; depois de uma das piores recessões em várias décadas; depois de seis anos nos quais oficialmente essa recessão havia terminado, mas o cidadão comum continuava sem perceber isso; depois de tudo, os EUA viram página, e o presidente anuncia uma nova era de esplendor, um novo amanhecer na América.

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A maior economia mundial está voltando a pulsar, e isso é visível nas paisagens alteradas pela febre do gás graças à nova técnica do fracking, em Estados como Dakota do Norte, Texas e Pensilvânia, ou então na volta de uma parte dos empregos às fábricas do Meio-Oeste, assoladas pela desindustrialização. Com o dólar forte e perto do pleno emprego, os EUA se aproximam da independência energética, um marco que altera os equilíbrios geopolíticos. No discurso do Estado da União, em janeiro, Obama situou em um mesmo plano o fim da recessão e o encerramento dos 15 anos de guerras no Iraque e Afeganistão. O país se transforma. As minorias, com a hispânica à frente, crescem e cada vez mais tomam a palavra na política e na economia. O casamento homossexual avança, e a pena de morte retrocede.

Obama disse há um ano em entrevista ao jornalista David Remnick que o máximo a que um presidente poderia aspirar seria escrever da melhor forma possível o parágrafo que lhe caberá nos livros de história. Só um parágrafo. A economia – o bolso do cidadão, suas expectativas, o sonho de que seus filhos prosperem e cumpram o preceito institucional deste país, o direito à busca pela felicidade – ocupará uma ou mais frases desse parágrafo.

A taxa de desemprego, que era de 10% no segundo semestre de 2009, um ano depois da primeira eleição de Obama, é agora de 5,5%. Em 2014, os EUA criaram 3,1 milhões de postos de trabalho, a maior cifra desde 1999 – fase final de uma época de prosperidade, a década de noventa, associada ao presidente democrata Bill Clinton e ao presidente do Fed (banco central) Alan Greenspan. Desde 2010, um ano depois do final da Grande Recessão, o número de empregos gerados supera os 11 milhões. Hoje, 148 milhões de pessoas trabalham nos EUA – maior número já registrado, como no anúncio de Reagan há mais de 30 anos.

Este é um país que se move aos trancos. As recessões são brutais e podem deixar milhões de pessoas à intempérie, sem redes sólidas de amparo social ou familiar. A mobilidade geográfica e profissional, a existência de um mercado interno de dimensões continentais, a imigração e a capacidade de inovação permitiram recuperações tão bruscas como as quedas. A história, de Jimmy Carter para Ronald Reagan, nos anos oitenta, e de George Bush pai para seu sucessor Clinton, nos noventa, é como uma montanha-russa. A incógnita era se a presidência de Obama seria novamente marcada por um boom depois dos anos de George W. Bush, ou se seria mais um Governo fracassado.

As repercussões do veredicto não abrangem apenas Obama. Está em jogo o prestígio do capitalismo norte-americano, posto em xeque com a Grande Recessão, e do sistema de separação de poderes desta democracia: uma das surpresas destes anos é que, apesar das previsões sombrias, a paralisia legislativa do Congresso não impediu a recuperação. A condição de primeira potência se sustentou sobre seu vigor econômico: com Carter, assim como nos últimos anos de Bush filho e nos primeiros de Obama, as turbulências econômicas se deram paralelamente à perda de influência dos EUA e às dúvidas sobre seu papel no mundo. Um sistema ineficiente não poderia servir de modelo.

A taxa de desemprego, que era de 10% no segundo semestre de 2009, um ano depois da primeira eleição de Obama, é agora de 5,5%.

A cifra de desemprego não é o único indicador de que o veredicto sobre o legado econômico dos anos Obama será mais benévolo do que parecia até recentemente. O déficit orçamentário, ou seja, a diferença entre o que o Estado arrecada e o que gasta, alcançou 10% do produto interior bruto no auge da crise. Agora, não chega a 3%. O galão de gasolina hoje custa em torno de 2,50 dólares (o equivalente a 2,15 reais por litro). Durante a campanha eleitoral de 2012, quando o galão custava 3,50 dólares, políticos como o republicano Newt Gingrich prometiam reduzir o preço em um dólar, e isso parecia uma quimera. A promessa de Mitt Romney, rival republicano de Obama, era reduzir o desemprego a 6% num prazo de quatro anos, até o final de 2016. Em metade desse tempo, o Governo Obama reduziu a taxa para meio ponto percentual abaixo da meta de Romney.

A dois anos do final do segundo e último mandato de Obama, não parece que, pelo menos na economia, sua presidência se encaminhe para ser um fracasso. O debate é se o triunfo será peremptório; se depois de janeiro de 2017, quando ele for embora da Casa Branca, estes anos serão recordados como uma nova era de prosperidade, comparável à de Clinton nos anos noventa. Em Washington, a maioria dos economistas ouvidos para esta reportagem, tanto de esquerda como de direita, relutam em estourar o champanhe. Eles apontam um aumento das desigualdades e o estancamento ou declive salarial da classe média. E recordam que o percentual de pessoas em idade economicamente ativa que estão efetivamente trabalhando ou procurando emprego caiu em dezembro para 62,7%, o nível mais baixo desde 1978, em plena era da malaise, o mal-estar difuso que marcou os anos Carter.

“A renda de 99% dos norte-americanos estancou ou caiu, apenas 1% teve aumento”, diz William Spriggs, economista-chefe do sindicato AFL-CIO, que representa 12,5 milhões de trabalhadores. “Mas a solução não é a que os republicanos propõem. Eles sustentam que necessitamos de um setor público ainda menor, mas isso não ajudará os 99%.” Spriggs, professor da Universidade Howard e ex-secretário-adjunto de Emprego na Administração Obama, aponta três diferenças entre a recuperação atual e a da era Clinton. A primeira é a queda nos investimentos públicos – na educação, por exemplo –, o que aumenta o preço das mensalidades universitárias e o endividamento estudantil. A segunda é a debilitação da rede de amparo social. E a terceira é que, diferentemente do que ocorreu nos anos noventa, o que impulsiona o crescimento agora não é um setor que exige um alto nível educacional, como foi a alta tecnologia naquela época, com a bolha da Internet.

“A economia se encontra numa expansão inferior à média”, diz James Pethokoukis, do think tank conservador Instituto da Empresa Americana. O PIB cresceu 2,4% em 2014. “Certamente você já ouviu falar da teoria do estancamento secular. Há várias maneiras de vê-lo. Uma é que existe uma crônica falta de demanda na economia. O porquê está aberto a especulação. Há quem diga que existe uma desigualdade de renda maior e que os ricos não gastam tanto, economizam muito, e por isso há menos demanda. Outros sustentam que desde a recessão temos um problema de demanda, e que possivelmente a economia simplesmente não pode crescer tão rapidamente como antes. O crescimento da força de trabalho se desacelerou por motivos demográficos. Houve um grande aumento da produtividade entre meados dos anos noventa e meados da década seguinte, mas depois disso foi pouco. E se há um crescimento fraco da força de trabalho e uma produtividade fraca, a economia será fraca também.”

Michael Grunwald não é economista, mas tem sido um dos cronistas mais certeiros e originais da era Obama. Em 2012, quando prevalecia uma visão negativa sobre os feitos econômicos do presidente, Grunwald, que é jornalista, publicou o livro The New New Deal (“o novo New Deal”, alusão ao programa de Franklin Roosevelt para combater a Grande Depressão). O livro trata do plano de estímulos de 800 bilhões de dólares, entre investimentos e cortes tributários, que o Congresso aprovou depois da chegada de Obama à Casa Branca, em 2009. A tese era de que os investimentos desse plano evitaram outra Grande Depressão e foram a semente de uma transformação profunda na economia norte-americana. No final de 2014, Grunwald, que colaborou na redação da autobiografia do primeiro secretário do Tesouro da era Obama, Timothy Geithner, publicou na revista Politico um artigo titulado Everything Is Awesome! (“Tudo está incrível!”, título da canção do filme Uma Aventura LEGO). Sem ironia, o artigo celebrava as boas notícias – recordes no índice mercantil Dow Jones, alta na confiança dos consumidores, o ebola sob controle – e desconstruía o ceticismo dos seus compatriotas e de muitos comentaristas. Ele, sim, estava estourando champanhe.

Enquanto Washington optava pelos estímulos, a Europa, sob a batuta de Merkel, aplicava políticas de austeridade

“Como as coisas estão indo bastante bem, as pessoas se esquecem de como a crise financeira foi horrível, pelo menos nos Estados Unidos. Na Europa provavelmente não esqueceram, porque ainda vivem nela”, diz Grunwald. “O choque financeiro depois do desmoronamento do Lehman Brothers [o banco que, em setembro de 2008, precipitou a crise] foi cinco vezes maior que o choque que levou à Grande Depressão. Historicamente, as recuperações depois das crises financeiras eram lentas, dolorosas e feias. Comparando com esse padrão, a recuperação dos EUA foi impressionante: mais rápida, mais forte e bem melhor, sob qualquer régua, do que outras crises financeiras recentes e do que as recuperações de outras economias avançadas.”

Outro debate é a quem atribuir o mérito. “O estímulo ajudou em algo, mas a percepção da sua influência está sendo um pouco exagerada. Houve um estímulo federal grande, mas no âmbito local e estadual foram aplicadas medidas de austeridade”, afirma Michael Madowitz, da instituição progressista Centro para o Progresso Americano. “Minha filha tem um ano, e quando ela for ler sobre tudo isto nos manuais de economia o que eles dirão será: ‘Eis um período no qual houve uma grande catástrofe, seguida de muita inatividade [no Congresso], e a entidade que mais reagiu foi o Federal Reserve’. Ele merece o crédito por aliviar o baque e iniciar a recuperação. Se fosse para construir um monumento, teria que ser a Bernanke”, disse ele, referindo-se a Ben Bernanke, presidente do Fed entre 2006 e 2014. Durante seu mandato, o banco central norte-americano reduziu os juros a perto de 0% e iniciou um plano de compra de títulos do Tesouro que injetou 3 trilhões de dólares na economia, um estímulo monetário semelhante ao que, sete anos depois, o Banco Central Europeu (BCE) está começando a promover.

“O que aconteceu entre 2008 e 2009”, resume Grunwald, “foi que os Estados Unidos tiveram resgates bancários extraordinariamente agressivos e bem pensados, um estímulo fiscal extraordinariamente amplo e bem pensado, e um estímulo monetário extraordinariamente bem pensado. E a Europa não teve nada disso. E é por isso que a economia da Europa está em frangalhos, e a nossa, não. Os alemães acreditavam que sabiam mais do que todo mundo, mas se enganaram”. As comparações com a Europa ressurgem com frequência nas entrevistas com economistas e analistas. Enquanto o Fed optava pelos estímulos monetários e Obama escolhia políticas keynesianas de estímulo, a Europa, sob a batuta da chanceler (primeira-ministra) alemã, Angela Merkel, aplicava políticas de austeridade.

Em maio de 2010, às vésperas da cúpula do G-20 em Toronto, Obama avisou por carta aos seus sócios europeus sobre o perigo de retirar abruptamente os estímulos fiscais adotados para reativar o crescimento depois da recessão. Os europeus não lhe deram atenção. O sucesso da fórmula Obama-Bernanke agora atrai aplausos da centro-esquerda e da esquerda europeia. Nas últimas semanas, políticos moderados, como o ex-premiê socialista espanhol Felipe González, ou mais radicais, como Pablo Iglesias, líder do partido Podemos, elogiaram essas políticas, durante as visitas que fizeram a Washington e Nova York respectivamente. Depois da vitória do partido esquerdista Syriza na Grécia, em 25 de janeiro, Obama disse: “Não se pode continuar espremendo países que se encontram em plena depressão”. Em 2009, ele e Bernanke optaram pela via oposta. Acreditam que a história lhes deu razão.

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