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Diário de um aplaudidor

Fazer parte do público em auditórios de programas televisão se tornou o último recurso econômico para desempregados, que recebem 10 euros por jornadas de oito horas

Daniel Verdú
Manuel Martín, desempregado, que engrossa o auditório de programas.
Manuel Martín, desempregado, que engrossa o auditório de programas.Samuel Sanchez

Todas as manhãs, ele volta da agência do INEM (Institudo Nacional de Emprego, na sigla em espanhol) e consulta as ofertas no jornal. Nada. Ou é aquela história de “mande o currículo e chamaremos”. Manuel Martín, pai de dois filhos, tem 49 anos e está desempregado há três. Só recebe uma ajuda de 426 euros (cerca de 1.290 reais) e sua ex-mulher entrou na Justiça por não receber a pensão. Enquanto não encontra algo, vive na casa de um amigo que lhe cede um quarto no bairro madrileno de Carabanchel. Perdeu tudo, lamenta. Hoje ligou para aquele número que lhe deram, para ir à televisão como público. Aplaudidor, como é chamado. À tarde, depois de meia hora de viagem em um ônibus cheio de gente com mil histórias, está em um polígono industrial de Algete (a 30 quilômetros de Madri) fazendo fila para entrar em um estúdio do qual não sabe quando sairá. A única coisa que lhe disseram é que receberá oito euros.

“Os que já têm… vão para lá! Não é tão difícil!”, berra uma espécie de capataz vestindo uma grossa jaqueta enquanto abre caixas de papelão com sanduíches e refrigerantes em plena rua. Manuel não tem fome, mas pega o que lhe dão. Como ele, mais de 400 pessoas desafiam o frio há uma hora e meia com uma lata geada de Pepsi na mão. Há aposentados, rapazes na faixa dos vinte anos e muitos estrangeiros: poloneses, romenos, lituanos, latino-americanos. Eles vieram em ônibus de vários pontos de Madri e a maioria é de desempregados, muitos deles não recebem nenhuma ajuda do governo. São aplaudidores profissionais, esse público que aparece se divertindo em programas da grade televisiva espanhola. Pegaram o ônibus às quatro da tarde e hoje muitos voltarão para casa por volta das duas da madrugada. Além do sanduíche de salame, que alguns guardam nas mochilas para o jantar, levarão esses oito ou nove euros por uma jornada que no total durará quase 10 horas. Porque os portões do set da TVE (Televisão Espanhola, emissora estatal) continuam fechados às quinze para as sete. O aplauso já não rende, diz Borja, um rapaz de 20 anos resignado e morto de frio.

Robert é lituano e comparece há meses a programas de TV.
Robert é lituano e comparece há meses a programas de TV.Samuel Sánchez
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Esse mundo de risadas e bailes artificiais é hoje o de Manuel, que durante anos trabalhou limpando esgotos. Mas também é agora o da peruana Jezzy, dos colombianos Álex e Fernando, ou do lituano Roberto Pukctys. Ao menos até que consigam um trabalho. Um de verdade. Souberam disso por meio de uma captadora de público para programas de televisão que lhes ofereceu a possibilidade de passar um momento agradável e voltar para casa com oito, nove ou dez euros. Porque essa é a graça. Podem voltar várias vezes por semana e tirar 150 euros ao mês. O limite é dado pelo aborrecimento. Antes de entrar, ainda no ônibus, assinam um papel em que renunciam a seus direitos de imagem e afirmam, antecipadamente, ter recebido os oito euros. Ou dez em um dia bom.

Assim funciona o submundo do público na televisão espanhola. Na maioria dos casos -os programas ao vivo, como El Hormiguero ou Buenafuente costumam ter um público mais vocacional- são pessoas sem rendimentos ou com uma exígua pensão recrutadas por agências (em Madri, Penelope ou Makers Actions TV são as mais importantes) ou por captadoras comissionadas por tais empresas: dois euros por cada aplaudidor. Muitos fazem disso um modo de vida. Manuel está vindo pela segunda vez. Nunca pensou que haveria algo mais duro do que limpar esgotos. Está horrorizado com o tratamento que recebe, como na época dos caciques, diz. “Mas estou desesperado”, afirma. “Não tenho vergonha em dizer isso. E o desespero te leva a esses lugares. Com o que me dão posso comprar um pão e um pacote de fumo”.

Antes havia menos gente e pagavam mais”, explica uma captadora de público

O ônibus chegou a Algete às cinco, mas até as sete o set não abrirá as portas. Dá no mesmo se do lado de fora as pessoas congelam. Esse trabalho também mudou, conta uma captadora que começou como público há mais de vinte anos e agora enche ônibus com 50 pessoas diariamente. “Antes havia menos gente e pagavam mais. Hoje é um abuso. Dá muita pena ver como são tratados, como gado. Às vezes tenho vergonha de trazê-los”, relata como que dizendo "é o que há."

Nesta noite, no remoto polígono, estão sendo gravadas algumas parte da final de Hit, la Canción, programa da TVE apresentado por Jaime Cantizano e repleto de onipresentes estrelas da música espanhola como Melendi, Mojinos Escocíos e Bustamante. Mas quando os músicos chegam de carro e atravessam a turba, ninguém pode pedir um autógrafo ou uma foto. Alguns tentam. “Agora não”, volta a dizer o capataz da jaqueta grossa. Hora de entrar. Lá dentro, o set está abarrotado: mais de 400 pessoas para obter esse brilho de fim de festa feliz. É “o chow-bussiness” [jogo de palavras com a expressão ‘chow’, gíria que significa ‘gororoba’ em inglês], diz um assistente de plateia hiperativo e esforçadamente engraçado enquanto exige movimentos de braços, aplausos e um infinito entusiasmo a um respeitável público que, na realidade, não tem nada para comemorar.

Jezzy (colombiana) e Álex (peruano) cursam o ensino médio e ganham um pouco de dinheiro como público de programas de televisão.
Jezzy (colombiana) e Álex (peruano) cursam o ensino médio e ganham um pouco de dinheiro como público de programas de televisão.S. Sánchez

Ana Belén, assistente social desempregada há dois anos e meio, vem intermitentemente há 16 anos. Vive do que sua família lhe dá e do que consegue ganhar aqui. Como todo mundo, faz o que lhe pedem. Se o assistente de palco pede palmas, ela aplaude; e se é preciso se levantar e rir, ela ri e agita os braços. “No início eu adorava vir, ficava na primeira fileira para que as pessoas me vissem. Agora sempre me escondo na última”, comenta, resignada, no auditório. Para ela, a espera é a pior parte nessa tragicomédia de luzes e cenas para regravar. E a monotonia. Para piorar a situação, ela acaba de perder o celular. “Grande negócio”, ironiza. Com os oito euros não conseguirá comprar nem um novo chip. Mas continua aplaudindo.

Ela suspeita que o celular tenha caído em um dos oitos banheiros químicos que a produtora instala no lado de fora para centenas de pessoas. Quando o programa começa, um membro da plateia só consegue usar o banheiro se tiver autorização do assistente de palco ou de um dos seguranças, depois de pedir várias vezes (este cronista só conseguiu no terceiro pedido). À noite, na escuridão total, entrar em uma dessas cabines é um desafio higiênico radical. “Minha mulher às vezes tem que levantar a saia para conseguir entrar e não se sujar. É nojento”, conta Fernando (nome fictício que ele adota por medo de não voltar a ser chamado), um aposentado de 71 anos que encontra aqui um complemento para a esquálida pensão que ele e sua esposa recebem. “Não vivemos só disso aqui, seria impossível. Serve para algumas despesas. Mas alguns casais enchem a geladeira com o que nos dão aqui”.

Os participantes reclamam da longa espera nas ruas e das horas sem ir ao banheiro"

Aqui todos se conhecem. Muitos, como esses aposentados, vêm há vários anos. Têm histórias engraçadas para contar sobre os apresentadores, os assistentes de palco e os artistas. São especialistas em televisão: se alguém pedisse, poderiam ser consultores no assunto. Como o chileno José Becerra, que se lembra bem de todas as falhas da produção. Já para Manuel, a tarefa é mais difícil. Como limpador de esgotos, tinha um trabalho mais “nojento”, define. Ganhava no máximo 1.500 euros. “Mas a televisão é um mundo muito mentiroso”, diz.

Ônibus que leva o público até algum estúdio de Madri.
Ônibus que leva o público até algum estúdio de Madri.S. Sánchez

O programa deveria terminar às 23h. Ou foi isso que deram a entender em algum momento. Mas passada essa hora, anunciam que algumas apresentações serão repetidas. Culpa da produtora. Ou dos artistas. Alguns na plateia começam a puxar um coro pedindo mais dinheiro. Mas a diretora de uma das agências corta a pequena rebelião pela raiz. O show tem que continuar. Além disso, todos já assinaram um documento reconhecendo o valor a receber, portanto não há o que discutir. “Sei que é pouquíssimo dinheiro, mas é o que me dão”, explica dias depois, por telefone, a dona de uma das agências, Penélope, há 19 anos no ramo. “Se não aceito o trabalho, outra empresa aceitará”, explica. Ela insiste que o que os aplaudidores fazem “não é um trabalho” e que o dinheiro que recebem não é um pagamento, mas sim “uma ajuda”. A empresária, no entanto, reconhece que as condições não são boas. “É difícil gerenciar grupos tão grandes”.

Quando o programa termina, a agência dá o dinheiro às captadoras e estas o entregam aos aplaudidores de cada ônibus, um a um. Com as notas contadas. Ana Belén, Roberto, Borja, Angie e Jezzy chegarão a Madri depois da meia-noite. Do ponto onde desce do ônibus, Manuel ainda tem um trajeto de uma hora até a casa de seu amigo. Não sabe se voltarão a chamá-lo. É quinta-feira e a maioria voltará a ter um programa no sábado. Desta vez na emissora La Sexta. Um programa de debate político e uma entrevista com Pablo Iglesias. Ou, traduzindo: mais oito euros.

Uma Odisseia televisiva

O encontro. Às 16h, os aplaudidores se reúnem em alguns pontos de Madri: Plaza Castilla, Aluche, Colonia Jardín, Alcobendas.

A viagem. O ônibus parte às 16h30 e chega por volta das 17h a uma área industrial de Algete.

A espera. O auditório da TVE só abrirá às 19h. Um sanduíche, uma bebida na rua, e muita paciência. Os termômetros marcam 3 graus.

O show. O programa se estenderá até quase meia-noite.

A recompensa. No ônibus, os aplaudidores receberão seus oito, nove ou dez euros.

A volta. Às 0h30, o ônibus deixará a todos em algum lugar de Madri, de onde muitos ainda levarão uma hora para chegar em casa.

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