Hawking sobre duas pernas
Primeira esposa do cientista mostra em livro retrato intenso de seus anos de formação
Pouca gente no planeta Terra não está familiarizada com a imagem de Stephen Hawking, cosmologista, físico teórico, escritor de sucesso, polemista afiado e personagem de Os Simpsons, preso pela esclerose lateral amiotrófica (ELA) a sua cadeira de rodas de alta tecnologia, comunicando-se com o mundo por meio de um sintetizador de voz que embora mude de software mantém — por vontade expressa de seu usuário — seu inconfundível e algo perturbador timbre robótico. A figura é tão familiar que é fácil esquecer que o físico foi até os vinte e poucos anos uma pessoa saudável, que se movia sobre duas pernas, sonhava com um futuro brilhante e se apaixonava como qualquer jovem, ou pelo menos como qualquer jovem educado em Oxford. Sua primeira mulher, Jane Hawking, nos apresenta agora um retrato intenso e vívido daqueles anos de formação intelectual e emocional. E também de tudo que viria depois.
A Teoria de Tudo – A Extraordinária História de Jane e Stephen Hawking (Editora Única) não é exatamente uma biografia do físico nem uma autobiografia de sua autora. Consciente de que a celebridade de seu ex-marido não acabará em décadas nem em séculos, a escritora e conferencista Jane Hawking decidiu contar ela própria sua relação com ele antes que “dentro de 50 ou 100 anos alguém invente nossas vidas”. Esta é a narração da mulher que mais bem conheceu Stephen Hawking durante sua juventude e que decidiu se casar com ele, apesar de sua trágica enfermidade. É por isso também a história de um dilema moral: um dos mais graves que um ser humano pode enfrentar ao longo de sua vida.
Hawking pertencia a uma dessas famílias britânicas que parecem tiradas de um filme de Frank Capra, excêntricas, intelectuais e sem preocupação quanto a sua imagem entre os mais ou menos horrorizados vizinhos. O pai, o médico Frank Hawking, não apenas era o único apicultor de Saint Albans, cidade de 60.000 habitantes, 30 quilômetros ao norte de Londres, como também o único a ter um par de esquis. “No inverno”, narra Jane, “passava esquiando em frente a nossa casa, a caminho do campo de golfe”. Os Hawking eram conhecidos em Saint Albans por hábitos como sentar à mesa lendo um livro cada um, e a avó vivia no sótão, que tinha entrada independente pela rua, e só descia em alguma ocasião familiar ou para dar um concerto de piano, instrumento no qual era uma virtuose.
Jane Hawking foi pela primeira vez à casa dos Hawking em 1962, convidada para o aniversário de 21 anos de Stephen, e conheceu ali seus amigos de Oxford, que se consideravam os “aventureiros intelectuais de sua geração”, nas palavras da autora, “dedicados de corpo e alma ao repúdio crítico de todo lugar-comum, à zombaria em relação aos comentários banais, à afirmação de seu juízo independente e à exploração dos confins da mente”. Jane, garota de firmes convicções cristãs e opiniões convencionais, sentiu-se incomodada por toda essa exuberância, mas desde o começo viu em Stephen algo mais que isso, uma natureza empática e independente pela qual, quase sem perceber, ficou apaixonada em poucos meses.
A notícia chegou num sábado de fevereiro de 1963, pela boca de sua amiga Diana: “Olha, soube do Stephen?”. O jovem talento estava havia duas semanas no hospital Saint Bartholomew, porque vinha tropeçando continuamente e não conseguia nem amarrar os sapados. Os médicos tinham diagnosticado a esclerose e previsto dois anos de vida. Jane ficou perplexa. “Ainda jovens o bastante para sermos imortais”, escreveu. Diana lhe disse que Stephen estava muito deprimido e que tinha presenciado a morte do garoto da cama ao lado no hospital. Stephen havia se negado a aceitar um quarto individual, fiel a seus princípios socialistas. As pessoas não mudam.
Mas o livro de Jane Hawking não tem o tom de tragédia, como tampouco teve a já longa vida de Stephen. Os que conhecem de perto o físico ficam invariavelmente perplexos com um detalhe: o muito pouco que lhe importa sua deficiência. Hawking não somente deixou perplexos seus médicos, por suas décadas de sobrevida à ELA –um caso insólito para a medicina—, como demonstra a cada dia que pode levar uma vida tão normal quanto possa ter um físico teórico. Sua produtividade científica o coloca na elite da disciplina, desfruta como qualquer um de um bom jantar com os amigos e nunca renunciou a seu aguçado senso de humor.
A esclerose naqueles primeiros anos tinha alternância entre crises e episódios de relativa normalidade, e pouco depois de sua deprimente entrada no hospital Saint Bartholomew, Jane pôde provar do estrepitoso estilo de guiar de seu noivo. Stephen a levou a Cambridge no gigantesco Ford Zephyr de seu pai — carro que tinha vadeado rios na Cachemira durante a estada indiana da família — no que acabou sendo uma das experiências mais aterrorizantes já vividas pela jovem. “Parecia usar o volante para se erguer e enxergar sobre o painel”, conta Jane. “Eu me atrevia apenas a olhar para a estrada, mas Stephen parecia olhar para tudo, menos para a estrada.” Que tempos, aqueles!
Há muito mais neste livro, um olhar extraordinário sobre a vida de uma figura ainda mais extraordinária: o físico mais popular da nossa época encarando o amor e o destino, os dois buracos negros a que acabam sucumbindo todos os membros desta espécie paradoxal.
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