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A eterna estrangeira

Jhumpa Lahriri, prêmio Pulitzer em 2001, é uma das poucas escritoras da 12ª Flip, fala sobre a imigração e a presença minoritária das mulheres na literatura

A escritora Jhumpa Lahriri.
A escritora Jhumpa Lahriri.paulo properzi (divulgação)

A escritora britânica Jhumpa Lahiri, de origem indiana, tem muito a dizer sobre imigração. Prêmio Pulitzer em 2001, Lahiri, que cresceu nos Estados Unidos e atualmente vive na Itália, é uma das narradoras mais reconhecidas dos tempos atuais e se destaca na 12ª Festa Literária de Paraty (Flip) – tanto por sua premiada obra, como por ser uma das poucas mulheres presentes no evento.

Num mundo sem fronteiras para a informação e o dinheiro, mas que ainda barra o trânsito livre de pessoas, pensar sobre a existência multicultural é uma tarefa comum. Sob a perspectiva cotidiana, mas também a da ficção, que é capaz de transcender a vida para devolver-lhe algumas respostas, Jhumpa repassa para suas obras o que experimentou do mundo, como ela mesma diz. Nascida em Londres em 1967, cresceu em Rhode Island e fez várias viagens à Índia ao longo de sua vida.

Sua estreia literária aconteceu com a coletânea de contos Intérprete de males em 2001 e lhe valeu um prêmio Pulitzer. O romance O xará, o primeiro de sua carreira, lançado em 2004, foi adaptado ao cinema três anos depois sob o título Nome de família e a direção de Mira Nair. Na Flip, a autora lança Aguapés (Biblioteca Azul, Globo Livros), seu livro mais recente, e reedições de O xará e Intérprete de males.

Pergunta. A condição de estrangeira e a imigração são temas que permeiam seu trabalho em literatura. Você pensa neles antes de decidir que história vai contar em cada livro?

Resposta. Na verdade, nunca penso em temas. Entendo que meu trabalho está contextualizado dessa maneira, porque é como eu experimentei o mundo. Meus primeiros quatro livros, sobretudo, tratam dessa luta de uma família que batalha para se entender e se colocar no mundo. Já meu último romance, Aguapés, eu acredito que vá além das questões da imigração, ainda que mantenha esse pano de fundo. É uma espécie de liberação que transcende a condição de imigrante, assunto sobre o qual eu pensei antes de escrever tudo o que publiquei antes, mas que só recentemente, depois de uma década mais ou menos, pôde sair.

P. Você costuma escrever para algum tipo de leitor específico? Pessoas, por exemplo, que como você viveram na pele o que é ser imigrante nos Estados Unidos?

R. Confesso que não penso no leitor. O que eu tento é criar uma história que faça sentido. Assim como quem constrói uma mesa, precisa que ela pare em pé para apoiar os pratos e a comida. Depois que termino de escrever uma primeira versão de uma história, costumo compartilhá-la com algumas pessoas, para sentir se ela tem algum significado para os outros. Mas o que aconteceu ao longo do tempo é que eu, que cresci com uma forte sensação de solidão nos Estados Unidos, achando que minha família era uma ilha isolada de tudo nesse imenso país, percebi que outros reconheciam nos meus livros suas próprias histórias. “Você escreveu sobre a minha família”, escutei de alguém de origem polonesa. Entendi que a questão de não ter uma identidade precisa não era só minha, mas de muitas pessoas. E que esse estado de suspensão é muito mais comum do que eu pensava quando criança.

P. O mundo dos seus pais, que deixaram a Índia nos anos 60-70 e imigraram para os Estados Unidos, é muito diferente do atual, ainda que a imigração continue sendo uma questão central. O que você opina sobre o trânsito de pessoas hoje?

R. O mundo mudou muitíssimo. As pessoas e as culturas se movem com mais facilidade que antes, com certeza, e nesse sentido acho que as coisas mudaram para melhor. Mas a imigração é ainda um tema sensível. Decidi morar com meu marido e meus dois filhos na Itália, em condições totalmente diferentes dos meus pais, mas posso notar que a Itália onde vivo hoje é para meus filhos talvez mais difícil do que os Estados Unidos onde cresci nos anos 70. Por um lado, a chegada de imigrantes africanos ao país, por exemplo, é um tema trágico, porque eles muitas vezes não sobrevivem nem mesmo à jornada. É perturbador. Por outro lado, o que eu sinto é que a noção de ser italiano continua bem estreita: se você vem de fora, você permanece fora. Não é, por exemplo, o que acontece nos Estados Unidos hoje ou o que eu sinto que aconteça no Brasil. Se me perguntam: “Você se considera uma estadunidense?”, eu digo que não, porque não cresci num país que considerava que eu fosse estadunidense. Meus filhos passam pelo mesmo hoje, ainda que em condições completamente diferentes, com todo o conforto e a possibilidade que temos de mudar a qualquer momento. Seja como for, a jornada de todo imigrante é cheia de incertezas, dificuldades e ansiedade.

P. Você faz parte, nesta Flip, de uma minoria de escritoras mulheres. Sem pensar na existência de algo como literatura feminina, que não vem ao caso, você considera que essa falta de representatividade seja um problema?

R. É uma questão complexa. Não sabia que eu era uma das poucas. Historicamente, sabemos que as mulheres sempre foram minoria na literatura e em outras áreas também. Minha geração, com as conquistas femininas nos anos 70, viveu uma situação em que se permitia que mais mulheres escrevessem, e eu sinto que, para mim, isso foi uma benção. Há muitas mulheres que tiveram que decidir entre escrever e ter o que podemos chamar de uma vida doméstica, criar filhos, etc. Até certo ponto, sinto que hoje muitas escrevem, mas não é algo que dou por sentado. Penso muito sobre isso. Apesar da melhora, ainda é mais difícil para as mulheres. Tenho dois filhos e três dos meus livros eu escrevi em casa, cuidando deles e sendo mãe. Foi difícil. Homens escritores frequentemente não se sentem tão atormentados com isso, saem de casa por seis, sete horas, escrevem e pronto. Comigo não foi assim. Meus filhos foram e são minha prioridade. Escrever, nesse sentido, é uma grande empreitada para uma mulher.

P. Seu estilo de escrita é bastante acabado, parece que você sempre soube escrever. É, de fato, assim que você se sente?

R. De jeito nenhum. Quando escrevo, sinto que o resultado é uma bagunça e que preciso trabalhar muito para chegar num resultado final. Eu jamais poderia ser uma jornalista, por exemplo. Alguém que depois de duas ou três horas entrega um texto pronto e claro a alguém. Sinto um embate inclusive com a língua, mesmo escrevendo em inglês, mas isso me faz bem. Recentemente, escrevi um pequeno romance em italiano, porque para mim é importante aprender a escrever de novo, desde o começo. Tendo essa experiência, percebi inclusive que me sinto estrangeira em qualquer idioma, em inglês inclusive, e isso é óbvio: idiomas são manifestações de uma cultura, de uma origem. Nenhuma das línguas que eu falo é fundamentalmente minha, nem a dos meus pais, nem o inglês e nem o italiano. E isso está bem. Essa necessidade de melhorar, sempre estando próxima do começo, é o que me mantém crescendo.

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