No Facebook, poucos usuários concentram muito engajamento, e isso é um problema

#FacebookPapers mostram que pesquisadores alertam há anos sobre tema

Concentração de usuários no FacebookNúcleo Jornalismo
Sérgio Spagnuolo Laís Martins Samira Menezes (Núcleo Jornalismo)

A concentração de muito engajamento em poucos usuários tem sido abordada por pesquisadores dentro Facebook há pelo menos quatro anos, à medida que foi ficando cada vez mais claro que esse fenômeno favorece desinformação e recompensa poucos perfis (geralmente os maiores).

Mesmo assim, apesar de repetidos alertas de seus próprios analistas, dados internos vazados no Facebook Papers mostram claramente que a concentração de compartilhamentos de posts originais (reshares, no jargão do setor) ainda é muito alta na plataforma até hoje: entre 22 de fevereiro e 21 de março de 2021, apenas 1,3% dos 2,82 bilhões de usuários ativos (37 milhões de perfis) no período foram responsáveis por metade dos posts recompartilhados na plataforma.

Compare esse número, que consta em publicação interna de funcionários de abril de 2021, com os 978 milhões (34,6%) de perfis que tiveram pelo menos um post recompartilhado nesse período.

É importante porque

  • Essa concentração traz implicações para a integridade da plataforma, visto que se sabe, com base em outros documentos, que esses conteúdos que viralizam têm mais chance de serem nocivos
  • Mostra contradição entre modelo de negócios e 'ideais' de democratização da plataforma, que se propunha a 'dar uma voz a todos'
Ou seja, pouquíssimas pessoas estão concentrando boa parte do engajamento.

“Esse dado é relevante para muitas discussões em andamento; estou particularmente interessado em como podemos democratizar melhor a viralidade no Facebook, ao recompensar participação mais ampla”, disse o pesquisador que compartilhou os dados na rede interna de funcionários.

Nada disso é novidade para o Facebook (cuja empresa agora se chama Meta).

Além de vários documentos internos mencionarem preocupação com a concentração de compartilhamentos, um estudo aberto patrocinado pela plataforma, em abril de 2017, já dava o tom há anos.

“Embora likes e comentários forneçam feedback, é o recompartilhamento que tem o potencial de espalhar desinformação para milhões de usuários em questões de poucas horas ou dias”, disseram os autores.

Ainda assim, a plataforma parece ter dificuldade em reconhecer isso abertamente. Em nota enviada por email ao Núcleo, o Facebook disse apenas que:

“A concentração de compartilhamento de conteúdo por usuários não é um comportamento novo nas redes sociais. No entanto, não queremos o compartilhamento de conteúdo potencialmente nocivo e de baixa qualidade. Tomamos uma série de medidas para mitigar a circulação viral desses conteúdos ajustando os sinais de distribuição no Feed.”

A resposta não tratou diretamente de nenhuma das perguntas feitas pelo Núcleo:

  • O Facebook considera um problema a concentração de muitos compartilhamentos de posts em poucos usuários?
  • Essa concentração de tantos compartilhamentos em poucos usuários pode ser considerada engajamento artificial (ou seja, campanhas coordenadas, fazendas de engajamento, etc)?
  • Quais as políticas do Facebook para aumentar a participação de mais pessoas no debate e não deixar que fique concentrado em alguns poucos?
  • Concentração de recompartilhamento (reshare) em posts com desinformação podem aumentar o alcance de conteúdo nocivo? O que a plataforma faz quando um post com desinformação recebe muito compartilhamento de poucos usuários?

Esse é o design

Nada disso acontece por acaso. A própria infraestrutura computacional do Facebook opera numa lógica de máxima influência que premia (em geral com alcance) aqueles que concentram a produção de conteúdo, explicou ao Núcleo a pesquisadora Lori Regattieri, doutoranda em comunicação e cultura pela UFRJ/ECO.

Quem tem mais recursos para mobilizar e concentrar influência vai sendo mais remunerado com visibilidade pelo próprio Facebook.”
Lori Regattieri, pesquisadora da UFRJ

“Esse é o circuito de remuneração que o Facebook dá para quem vai interagindo com essas condições da própria infraestrutura que dão retorno para o FB”, explicou.

Trata-se, então, de um círculo vicioso: o Facebook valoriza e recompensa quem atua para maximizar influência, e a concentração resultante dessa maximização também gera, por sua vez, retorno à empresa.

Regattieri estuda a fundo as infraestruturas digitais do Facebook e do Twitter, de como essas plataformas monitoram, processam e canalizam dados para as necessidades de seus modelos de negócios –ao mesmo tempo em que criam condições para criar perfis de grande concentração de influência. Segundo ela, a empresa trabalha com o desafio de reduzir o custo social disso.

“O Facebook está tentando entender como que um conteúdo pode viralizar sem cansar as pessoas, gerando uma espécie de satisfação distribuída”, disse Regattieri ao Núcleo.

Um efeito prático dessa concentração de influência é o que entendemos popularmente como bolhas homofílicas, que levam à radicalização (por serem muito fechadas e que pensam muito similarmente). Para a pesquisadora, era previsível que essa seria uma consequência dessa infraestrutura.

“Esse é um defeito dessa infraestrutura do Facebook, que, ao contrário de democratizar a viralização, com essa prática que se tem hoje as pessoas ficam dentro dessas bolhas”, explicou Regattieri, que acompanha o trabalho de pesquisadores e cientistas de dados do Facebook desde muito antes da revelação dos documentos.

Nas profundezas do compartilhamento

Uma análise do nsobre os Facebook Papers encontrou dezenas de documentos que tratam da concentração de compartilhamento na plataforma.

Um desses estudos, de abril de 2019, analisa especificamente o papel de deep reshares (quando um post é compartilhado muito além da rede de contatos de um perfil) e desinformação.

“Nossos dados revelam que desinformação, em geral, depende muito mais de deep reshares para distribuição do que grandes publicações”, escreveu um pesquisador do Facebook em uma análise divulgada na rede interna da empresa, alertando que os dados são mais confiáveis nos Estados Unidos, mas que “espera impactos semelhantes fora dos EUA também”.

Descobrimos que quando um usuário vê um deep reshare de um link ou foto, é quatro vezes mais provável que esteja vendo desinformação quando comparando a links e fotos no feed de notíficas em geral”
Pesquisador do Facebook, em análise publicada em 2019

O autor cita como exemplo um vídeo viral que alega falsamente que Nancy Pelosi, uma das principais líderes do Partido Democrata dos Estados Unidos, estava bêbada. No total, 45% das visualizações vieram de pessoas que não seguiam a pessoa (um comediante) que publicou o vídeo.

Outra análise, também de abril de 2019, conclui que em todo o Facebook somente 1,6% de todos os usuários ativos em um mês contribuíram com metade de todos os posts compartilhados –bem em linha com os dados mencionados acima, de 2021.

“Usuáros mais velhos recompartilham mais, especialmente de páginas de desinformação”, diz o autor. “Mulheres recompartilham mais no geral, mas homens recompartilham mais de páginas de desinformacão.”

Outro documento, agora de novembro de 2019, também trata do tema, mais especificamente sobre a concentração da voz cívica, e aponta que isso é um problema para a empresa. Já no primeiro parágrafo, a análise dizia que no Brasil 3% dos usuários criaram 33% do “conteúdo cívico” –que envolve publicações em torno de política.

Um outro documento, de março de 2020, sinaliza que posts compartilhados dentro de grupos possuem maior probabilidade de gerar retornos de usuários com preocupações de integridade. Além de conteúdo de baixa qualidade, essa pesquisa identificou também problemas de repetição (o que infla ainda mais o alcance de certos posts).

“Talvez de maneira mais significativa, vemos uma significância estatística tanto na repetitividade tanto no Feed de Notícias quanto em Grupos, considerando que muitos posts idênticos são compartilhados em muitos grupos diferentes. Isso pode dar um sentimento de spam para a plataforma”, notaram os autores.

Como fizemos isso

As informações desta reportagem fazem parte de documentos revelados à Comissão de Valores Mobiliários dos EUA (SEC, na sigla em inglês) e fornecidas ao Congresso dos Estados Unidos de forma editada pela assessoria legal de Frances Haugen. As versões editadas recebidas pelo Congresso dos EUA foram revisadas por um consórcio de veículos de notícias. O Núcleo Jornalismo teve acesso ao documento.

O Núcleo foi convidado a participar do consórcio de veículos internacionais que possuem acesso aos documentos trazidos à tona pela ex-funcionária do Facebook Frances Haugen, no que ficou conhecido como Facebook Papers.

Esses documentos foram primeiramente noticiados pelo Wall Street Journal, que chamou a série de Facebook Files.

Esta reportagem foi publicada originalmente no site do Núcleo Jornalismo.

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