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Reconhecimento facial chinês chega às portas da União Europeia

Governo sérvio utiliza em Belgrado um sistema composto por mil câmeras com um ‘software’ capaz de identificar as pessoas em tempo real desenvolvido pela Huawei

Manuel G. Pascual
Câmera de reconhecimento facial instalada em Belgrado.
Câmera de reconhecimento facial instalada em Belgrado. Share Foundation

A sombra do Grande Irmão projetada pela polêmica tecnologia de reconhecimento facial chegou às portas da UE. Mil câmeras de vigilância conectadas a um programa capaz de identificar rostos em tempo real desenvolvido pela Huawei foram colocadas nos últimos meses nas ruas de Belgrado. Na Europa esse tipo de sistema já era utilizado pela polícia de algumas áreas do Reino Unido. Mas até agora não havia a notícia de que, como acontece na capital da Sérvia, fossem usados em questões tão delicadas à privacidade software e equipamentos da China, onde essa tecnologia constitui um dos pilares do férreo sistema de controle social do regime.

O Governo de Aleksandar Vučić, que tem boas relações com a China, começou a trabalhar em 2019 com esse sistema de vigilância por vídeo, batizado como Safe City. Ainda que o objetivo seja instalar milhares de dispositivos pela cidade de Belgrado, por enquanto se sabe que há pelo menos mil. A eurodeputada francesa Gwendoline Delbos-Corfield, do partido Europa Ecologia Verdes, foi quem deu o alerta há duas semanas de que o sistema estava pronto para começar a funcionar em um país há anos candidato a entrar na UE.

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O burburinho que seu alerta causou, posteriormente publicado pelo Financial Times, fez com que dias atrás o Executivo sérvio afirmasse no Parlamento que por enquanto o aplicativo de reconhecimento facial não será usado. “É um fato que na cidade há cada vez mais câmeras. Até onde sabemos, entretanto, não estão sendo usadas com o aplicativo de reconhecimento facial, e sim para seu objetivo primário: monitorar o tráfego e garantir a segurança da população”, disse Milan Marinović, comissário da Agência de Proteção de Dados da Sérvia.

Mil câmeras conectadas a um software de reconhecimento facial foram instaladas em Belgrado.
Mil câmeras conectadas a um software de reconhecimento facial foram instaladas em Belgrado. Share Foundation

Na União Europeia há atualmente uma moratória em relação a essa tecnologia, muito questionada no Ocidente por suas implicações na privacidade da população, mas amplamente usada na China. Esses sistemas permitem, por exemplo, comparar automaticamente o rosto de uma pessoa captado pela câmera com os registrados em um arquivo de suspeitos e, no caso de coincidência, lançar um alerta para efetuar sua prisão. A proposta de Regulamento europeu à inteligência artificial apresentada pela Comissão Europeia em abril, em trâmites de aprovação, contempla a proibição de seu uso em espaços públicos, ainda que deixe a porta aberta para que sejam utilizados com finalidades antiterroristas.

Nos Estados Unidos, o reconhecimento facial é uma tecnologia amplamente utilizada pela polícia, assim como por instituições federais como o FBI, a agência de luta antidrogas (DEA), os serviços de fronteira e imigração e as forças militares. Várias cidades, entretanto, proibiram e congelaram seu uso e grandes empresas como a Amazon, IBM e Microsoft suspenderam a venda desse tipo de sistema à polícia pelos protestos pela morte de George Floyd, asfixiado por um agente em Minneapolis em 25 de maio de 2020. Na Câmara de Representantes há uma iniciativa registrada para regulamentar esses sistemas no âmbito federal, mas até agora não se traduziu em nada concreto. A batalha legal iniciada em Detroit por Robert Williams, o primeiro caso conhecido de prisão irregular no país pelo uso defeituoso de um algoritmo de reconhecimento facial, pode causar sua proibição pela via judicial.

Um sistema confidencial

“O Ministério do Interior lidou com o assunto com enorme opacidade”, se queixa por telefone Djordje Krivokapic, cofundador da Share Foundation, uma organização sérvia em defesa dos direitos humanos no entorno digital que surgiu após o início do programa Safe City. “Não responderam nossos questionamentos, como que fosse feito um debate público sobre o uso da tecnologia, que fosse avaliada do ponto de vista técnico antes de usá-la e que nos dissessem exatamente quais capacidades concretas o sistema tem”. O sistema permite reconhecer e encontrar alguém a partir de uma fotografia, por exemplo a de uma carteira de identidade, e saber onde esteve. A organização suspeita que, além disso, o software pode incorporar utilidades mais sofisticadas, como as que detectam padrões na maneira de andar das pessoas.

A maior parte da informação da Share Foundation sobre o sistema Safe City não vem das autoridades sérvias, e sim do que foi publicado pela Huawei. “Ao contrário do Governo [sérvio], eles querem torná-lo público para mostrar seus avanços e provar que sua tecnologia de reconhecimento facial é capaz de entrar na Europa”, diz Krivokapic.

“Quais modelos algorítmicos foram usados? Quais deles estão ativos? Quais traços de comportamento estão sendo monitorados? Como os dados são reunidos? Por quanto tempo são guardados e em que lugar? Quando são apagados, se é que isso acontece?”, se pergunta Slobodan Marković, assessor digital para o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), em um vídeo divulgado pela Share Foundation em que vários especialistas expressam sua preocupação pelo programa Safe City e a falta de informação pública a respeito.

Mapa das câmeras colocadas em Belgrado elaborado pela Share Foundation.
Mapa das câmeras colocadas em Belgrado elaborado pela Share Foundation.

A organização de Krivokapic elaborou um mapa digital de Belgrado em que aparecem quase mil câmeras identificadas por eles mesmos com ajuda da população. Também promoveram a coleta de assinaturas para que o programa seja retirado. “Eu o vejo como terrivelmente problemático, pois viola as leis sérvias de privacidade e proteção de dados”, comenta um professor da Universidade de Belgrado que apoiou a petição e prefere não dar seu nome.

“A lei de proteção de dados sérvia tem os mesmos padrões que o Regulamento Geral de Proteção de Dados (RGDP)”, diz Krivokapic em relação à lei europeia. “Ainda assim, a polícia seguiu em frente”. “O direito à privacidade será prejudicado, com certeza”, diz Marinović, da Agência de Proteção de Dados. “Por isso é importante conhecer as medidas que nesse caso o Ministério do Interior coloca em andamento para minimizar esses danos”.

China e o ‘tecnonacionalismo’

Os laços que unem a Sérvia e a China são fortes. Somente entre 2007 e 2017, a república balcânica recebeu empréstimos a juros baixos para desenvolver a infraestrutura no valor de três bilhões de dólares (15 bilhões de reais). Esse financiamento foi usado, entre outras coisas, para desenvolver a linha de alta velocidade que conecta Belgrado com Budapeste.

“A China pressiona cada vez mais para que comprem suas tecnologias na Europa, e sempre procura os elos frágeis na cadeia” diz Andrés Ortega, analista e pesquisador associado do Real Instituto Elcano. “Nesse momento os Balcãs são esse elo: não conseguem entrar na UE, precisam de dinheiro, de investimento em infraestrutura e de tecnologia”. Com a utilização de um sistema de reconhecimento facial em Belgrado, opina Ortega, o gigante asiático se dispõe a influenciar nas portas da Europa em um assunto que afeta diretamente nosso conceito de democracia liberal.

Sistema de vigilância 'inteligente' na China. No painel é mostrado o rosto das pessoas que não atravessam na faixa.
Sistema de vigilância 'inteligente' na China. No painel é mostrado o rosto das pessoas que não atravessam na faixa. Paula Escalada Medrano (EFE)

A Sérvia entra nos planos da chamada Rota da Seda digital, um dos eixos da política externa chinesa. Pequim assina acordos com países aos quais concede empréstimos a juros muito baixos e a longo prazo e se compromete a investir em infraestrutura. Essas questões costumam chegar pelas grandes empresas chinesas, e o componente digital costuma estar presente. “A Huawei e outras grandes corporações chinesas têm mais experiência internacional do que muitas das big tech norte-americanas”, indica Andrea G. Rodríguez, pesquisadora em tecnologias emergentes no Cidob (Barcelona Centre for International Affairs). Na utilização do 5G, por exemplo, a Huawei não tem rival. “A China exporta suas tecnologias, ganha presença internacional e as empresas reúnem os dados da população onde são usadas para melhorar seus próprios sistemas, nesse caso algoritmos de reconhecimento facial, de maneira que seus produtos vão sendo aperfeiçoados e se tornando mais exportáveis”.

Sempre fica a dúvida sobre se a China também usa a tecnologia que exporta para espionar nos locais. Era o que Donald Trump acreditava, e vetou a própria Huawei. Mas não é o único. “O repúdio à tecnologia chinesa por medo a que tenha uma porta traseira e comunique seus dados ao sistema também está na Administração Biden e cresce nos países europeus”, diz Ortega. “Mas nossa dependência da tecnologia chinesa já é muito alta, primeiro porque é melhor e segundo porque é mais barata do que a europeia”.

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