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“Estamos entregando nossa privacidade de uma forma excessivamente frívola e alegre”

O especialista em inteligência artificial Ramón López de Mántaras apoia a proibição do uso de sistemas de reconhecimento facial, como ocorreu em São Francisco

Isabel Rubio
Ramón López de Mántaras, diretor do Instituto de Pesquisa de Inteligência Artificial, na segunda-feira em Madri.
Ramón López de Mántaras, diretor do Instituto de Pesquisa de Inteligência Artificial, na segunda-feira em Madri.KIKE PARA.
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Imagine viver em uma casa com paredes de vidro que permitam que qualquer um do lado de fora veja tudo que você faz. Seus movimentos, seus hábitos e seus comportamentos. Esse é o cenário apresentado pelo diretor do Instituto de Pesquisa de Inteligência Artificial do Centro Superior de Pesquisas Científicas da Espanha, Ramón López de Mántaras (Sant Vicenç de Castellet, 1952), com a chegada do 5G e a incorporação de um grande número de dispositivos inteligentes nas residências. “Ter um monte de objetos e aparelhos em sua casa conectados à Internet é uma péssima ideia. Eles podem saber o que você consome, o que compra, quando lava a roupa, o que cozinha, o que come e até coisas tão íntimas como as que ocorrem dentro do seu banheiro”, afirma.

O cientista cita como exemplo os banheiros eletrônicos no Japão, que são capazes de analisar a urina e, dessa forma, monitorar a saúde de uma pessoa. Já existem dispositivos conectados de todo tipo para residência e escritório: de mesas que controlam quanto tempo trabalhamos até camas que detectam quantas horas um usuário dorme. Além disso, a venda de alto-falantes inteligentes não para de crescer. Apenas no último trimestre de 2018, 38,5 milhões desses dispositivos foram vendidos no mundo, o que significa um aumento de 95% em relação ao mesmo trimestre do ano anterior, segundo a consultoria Strategy Analytics.

“Não tenho e não quero ter um”, diz López de Mántaras. Esse tipo de aparelho está “sempre conectado e escutando”, explica o cientista em uma entrevista concedida na última segunda-feira ao EL PAÍS, antes de participar da apresentação de ¿Hacia una Nueva Ilustración? Una Década Trascendente (“rumo a um novo Iluminismo? Uma década transcendente”), o 11º livro da coleção do OpenMind, o portal de inovação e conhecimento científico do BBVA. Empresas como Amazon, Google e Apple garantem que os assistentes só são ativados ao ouvir um comando. Mas já ocorreram vários casos em que esses dispositivos gravaram conversas privadas ao se ativar por engano: “Sempre tentam vender a ideia de que vão facilitar sua vida com base na sua renúncia à privacidade”, acrescenta.

Além disso, tanto Amazon como Google têm funcionários que revisam diariamente conversas aleatórias que os usuários mantêm com os assistentes para melhorar o sistema. Apple, Microsoft e Samsung se negaram a informar ao EL PAÍS se têm equipes que façam esse tipo de trabalho. López de Mántaras considera que “todas [essas empresas] têm pessoas escutando” e diz que a falta de transparência a respeito disso é uma questão de marketing: “Querem fazer você acreditar que a inteligência artificial funciona muito melhor do que realmente funciona. Se você pedir a um assistente que ‘anote o seguinte na lista de compras’, ela vai dizer: ‘O seguinte foi anotado na lista de compras’, porque acha que o seguinte como o pão ou o leite. Ele não entende a semântica”.

“ Ter um monte de objetos e aparelhos em sua casa conectados à Internet é uma péssima ideia. Eles podem saber o que você consome, o que compra, quando lava a roupa, o que cozinha, o que come e até coisas tão íntimas como as que ocorrem dentro do seu banheiro”

O conjunto de dispositivos conectados poderia servir para “treinar um sistema de inteligência artificial para ter um perfil muito preciso do comportamento das pessoas da casa”, afirma o cientista. “A partir do momento em que você sabe tudo de uma pessoa, pode lhe oferecer publicidade de todos os tipos. Pode oferecer, por exemplo, remédio para a insônia ao detectar que uma pessoa não dorme bem”, explica López de Mántaras.

O especialista assinala que muitas vezes os usuários não têm pensamento crítico na hora de dar seu consentimento para que diferentes empresas coletem todos os tipos de dados: “Estamos entregando nossa privacidade de uma forma excessivamente frívola e alegre. É isso que me preocupa”. Para ele, a solução para evitar isso inclui “educar e informar as pessoas sobre todos esses problemas”.

Reconhecimento facial

Mas às vezes o problema é mais grave, como quando não é nem solicitado o consentimento do usuário. É o que ocorre em alguns lugares com “as câmeras que estão nas ruas e têm, por trás delas, sistemas de reconhecimento facial”. Um homem levou à Justiça a polícia de Gales, no Reino Unido, por registrar uma imagem de seu rosto com um sistema de reconhecimento facial automático enquanto fazia compras natalinas, segundo a BBC.

O especialista em inteligência artificial ressalta que “o consentimento é imprescindível”. Embora reconheça que “não é a solução ideal”, já que muitas vezes os cidadãos não têm opção a não ser aceitar o reconhecimento facial se quiserem participar de um grande evento no qual são usados sistemas desse tipo. Por exemplo, um jogo de futebol ou um show: “Se você compra o ingresso, está implicitamente dando seu consentimento. O problema é que se você não der o consentimento, não terá o ingresso e não poderá ir. É quase uma chantagem”.

Ele assinala também que os sistemas de reconhecimento facial têm limitações. Entre elas, “80% ou 90% de falsos positivos”. E às vezes “detectam que seu rosto corresponde, com uma similaridade bastante alta, a alguém que está em uma lista de possíveis suspeitos”. De fato, em 2018 o reconhecimento facial da Amazon confundiu 28 congressistas com suspeitos procurados pela polícia. Da mesa forma, já se demonstrou que é possível passar despercebido por esses sistemas: “Também há falsos negativos. Se um terrorista colocar um adesivo no rosto ou usar óculos como os de Elton John, muito grandes e multicoloridos, é possível que não seja identificado”.

Talvez daqui a algum tempo o sistema [de reconhecimento facial] funcione muito bem e os erros sejam suficientemente baixos a ponto de ser aceitáveis, mas é preciso ter cautela e esperar

Essas limitações e a perda de privacidade que tais sistemas acarretam provocaram polêmicas nos últimos meses. São Francisco se tornou há duas semanas a primeira cidade dos Estados Unidos a proibir sistemas desse tipo. “Considero perfeito. Vendo como funcionam mal, acho que é isso que deve ser feito. É preciso ter cautela e esperar. Talvez daqui a algum tempo o sistema funcione muito bem e os erros sejam suficientemente baixos a ponto de ser aceitáveis”, afirma López de Mántaras. Apesar disso, ele não se mostra tão contundente ao dizer se estenderia essa proibição para outros lugares: “Seria preciso estudar o assunto com muito cuidado, é um problema difícil. A regulamentação é complicada e seria necessário o trabalho de especialistas em leis e assuntos jurídicos”.

Robôs e trabalho

Também tem sido muito debatido nos últimos anos o impacto que a incorporação das máquinas inteligentes terá em diferentes empregos. López de Mántaras lembra que “há anos a informática em geral tem um impacto na forma como fazemos nosso trabalho e no fato de que muitas coisas estão sendo automatizadas”. Um exemplo são os caixas eletrônicos.

O especialista em inteligência artificial propõe que as máquinas não substituam as pessoas, e sim que trabalhem de forma conjunta. “Ao redor de um posto de trabalho pode haver 20 tarefas distintas. Algumas são automatizáveis, e para outras continuará sendo importante que exista uma pessoa”, afirma. Ele cita como exemplo os sistemas de assistência a idosos: “Não se trata de colocar robôs e tirar os funcionários de uma residência para idosos, mas de que trabalhem conjuntamente”. Ele imagina, por exemplo, um robô ou um sistema computadorizado “que avise o cuidador para que não se esqueça de dar o remédio ou ajude na transferência de uma pessoa para um hospital”.

É precisamente no setor da saúde que têm ocorrido vários avanços graças à inteligência artificial. Embora esses sistemas ainda tenham limitações. López de Mántaras admite inclusive “ter certa relutância em chamar isso de inteligência”. “A inteligência artificial atual funciona bem quando é aplicada em um âmbito muito específico. Por exemplo, jogar xadrez ou fazer um diagnóstico médico”, explica. Mas ressalta que ela só sabe fazer uma tarefa e não entende o que faz. Por exemplo, “um programa capaz de traduzir idiomas não entende a semântica da linguagem”. Mudar isso é um desafio: “O grande desafio da inteligência artificial é fazer inteligências artificiais cada vez mais gerais. Estamos muito longe de conseguir isso, estamos enfrentando as mesmas dificuldades há 50 anos. Para que isso seja possível, é imprescindível que as máquinas possam entender como as coisas funcionam. Uma compreensão de verdade, profunda, similar à humana”.

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