Coluna

Acabou, não. Apenas começou

As Forças Armadas são exímias em fazer ouvir a voz de uma minoria aguerrida e fascista, enquanto procuram de todas as formas calar a verdadeira maioria. Essa maioria agora quer voz

No Rio de Janeiro, manifestantes foram às ruas neste domingo contra a violência policial no Brasil e contra o racismo. Moradoras foram às janelas apoiar o protesto.MAURO PIMENTEL (AFP)

“Acabou, porra”. Foi assim, com sua polidez costumeira, que o sr. Jair Bolsonaro reagiu ao fato de seus aliados estarem em investigação por crimes contra a República. No mesmo dia, um de seus filhos (a formulação é sintomática, o referido é conhecido pela população por ser “filho de...”), falou abertamente sobre o golpe de 1964 como pret...

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“Acabou, porra”. Foi assim, com sua polidez costumeira, que o sr. Jair Bolsonaro reagiu ao fato de seus aliados estarem em investigação por crimes contra a República. No mesmo dia, um de seus filhos (a formulação é sintomática, o referido é conhecido pela população por ser “filho de...”), falou abertamente sobre o golpe de 1964 como pretensa resposta ao “clamor popular” na chamada guerra entre poderes.

Mas se for para falar em “clamor popular”, melhor começar por responder porque a maioria das brasileiras e dos brasileiros está hoje sem voz. Segundo a última pesquisa Datafolha, 43% das brasileiras e dos brasileiros rejeitam claramente o Governo Federal, avaliando-o como ruim ou péssimo. Nunca na história recente deste país um presidente chegou a um ano e meio de seu mandato com tamanha rejeição. Isso em uma situação na qual todas as peças estavam a seu favor. Pois uma situação de pandemia equivale (ao menos do ponto de vista das identificações políticas) a uma situação de guerra e, nestas circunstâncias, a população tende a se unir em torno de seu Governo para lutar contra algo que a ameaça como um todo.

O sr. Bolsonaro poderia ter chamado todos a baixarem as armas, conclamado uma união nacional pela defesa da vida. Ele poderia ter dito que passaríamos todos por momentos muito difíceis na economia, mas que o Governo iria mobilizar seus recursos para fornecer salários para as pessoas ficarem em casa por três meses. Ele poderia fazer um grande acordo para impedir que as empresas demitissem e para obrigar as grandes fortunas e o sistema financeiro a repartir seus rendimentos estratosféricos em um momento de implosão social. Se ele fizesse isto, agora sua aprovação seria recorde. Mas, para isso, Bolsonaro não poderia ser Bolsonaro. Para isso, o Brasil não poderia ser o Brasil. E, para isso, sua elite suicida e escravocrata não poderia ser sua elite suicida e escravocrata.

Ao contrário, e a conta dessa responsabilidade vai para todos os empresários que o apoiam, o Governo preferiu abrir caminho para se transformar no novo epicentro mundial da covid-19. Neste exato momento, morrem mais brasileiras e brasileiros desta doença do que qualquer outra nacionalidade no mundo. Isto levando em conta apenas os números oficiais, com suas subnotificações evidentes e limitações para testagem da população. Esta é a verdadeira face da “responsabilidade para com o país”, do “cuidado da nação” e de outras afirmações com as quais somos bombardeados diariamente. Com uma responsabilidade destas, país algum precisa de inimigos.

Mas um observador da vida nacional poderia se perguntar porque essa maioria que não quer mais o sr. Bolsonaro e sua naturalização genocida das mortes de brasileiras e brasileiros não é ouvida. As Forças Armadas, responsável maior pelo caos no qual estamos, são exímias em fazer ouvir a voz de uma minoria aguerrida e fascista, enquanto procura de todas as formas calar a verdadeira maioria. Essa maioria agora quer voz.

Ela foi pega em uma chantagem perversa do Governo. Sendo o único setor que realmente se preocupa com a vida das brasileiras e dos brasileiros mais vulneráveis, ela ficou em casa, respeitou a quarentena, resumiu sua indignação a panelaços, enquanto via a horda minoritária sair às ruas para zombar das mortes e exigir políticas irresponsáveis que destruiriam de vez o país. Pois uma política madura e responsável de isolamento poderia ter permitido ao país debelar a pandemia em três meses. Agora, seremos a referência mundial em catástrofe, seremos o país contra o qual o mundo levantará um cordão sanitário e, ironia macabra, isso sim irá “destruir a economia”.

Essa maioria teve que ouvir passiva o sr. Bolsonaro blefar em “armar a população” sendo que ele sabe muito bem o que acontecerá se ele realmente armar a população, ao invés de simplesmente armar suas milícias minoritárias. Se ele quer fazer isto, que comece por dar armas aos povos indígenas cujo ocupante atual do ministério da educação despreza a existência ou à classe trabalhadora espoliada por sua política econômica exímia em dar presentes a quem diz que 5.000 ou 7.000 mortes não são nada diante do prejuízo que ele terá por não poder vender hambúrgueres.

Agora, essa maioria vê o sr. Bolsonaro procurar realizar uma operação digna de 1984, de George Orwell. Nesse romance, Orwell lembra, entre outras coisas, que há uma mutação necessária na língua para que um regime autoritário se imponha. Algo parecido tem ocorrido entre nós. Tal como na Oceania de Orwell, somos diariamente submetidos ao exercício de reescritura do sentido de termos que pareciam elementares. No país do bolsonarismo, ignorância é força, liberdade é genocídio.

Pois notem como o discurso sobre a “liberdade” emana tão facilmente da boca daqueles que fazem de tudo para cala-la, que amam torturadores e louvam ditaduras, como a que conhecemos durante vinte anos. Há dias, o sr. Bolsonaro, em uma de suas lives, afirmou: “muito maior que a própria vida, é nossa liberdade”. Bem, deixando de lado a contradição elementar de que uma liberdade sem vida não é liberdade alguma, há algo de interessante nesse tipo de afirmação. Ela ecoa o discurso oficial de que as políticas de restrição a circulação e atividades desenvolvidas para o combate contra a pandemia seriam um “atentado a liberdade”.

Tal discurso ressoa um certo tipo de concepção de liberdade que parte do dogma dos limites sagrados dos indivíduos. Vimos algo parecido quando manifestantes norte-americanos saíram às ruas com um cartaz onde se via uma máscara dentro de um sinal de proibido e se lia “meu corpo, minhas regras”. O mesmo raciocínio serviu de base para manifestantes alemães exigirem o “direito de se infectarem”.

A lógica é clara e não há como negar certa consistência. Sendo “liberdade” algo que alguns compreendem como a propriedade que tenho sobre mim mesmo, ninguém poderia me obrigar a portar uma máscara médica, a ficar em casa, a cuidar de meu corpo, a não ser que ele tenha meu consentimento para isto. Afinal, como disse o sr. Bolsonaro em outra de suas ocasiões de reflexão filosófica: “Se eu me contaminei, é responsabilidade minha, ninguém tem nada a ver com isso”.

Ao menos, tudo isto serve para mostrar o tipo de monstruosidade social legitimada pelo discurso que reduz a liberdade à propriedade de si. Desde que aceitamos essa premissa, as consequências são o discurso do ocupante atual da presidência da República. E de nada adianta afirmar coisas como: “mas o exercício da propriedade que tenho de mim mesmo deve estar submetida a respeito pelo risco a vida do outro”. Pois eles poderão sempre perguntar ( e, novamente, com certa consistência): mas quem decide quais são os “riscos relevantes” ao outro? Por que devo admitir que o estado ou cientistas que se colocam como sábios oraculares decidiram o que é “risco relevante”?

A única maneira realmente consequente é recusar essa liberdade que se realiza no genocídio. Liberdade não é ser proprietário de mim mesmo, mas compreender que estou em um sistema de mútua dependência que exige o reconhecimento da racionalidade de afetos de solidariedade genérica. O corpo que chamo de meu não é simplesmente meu corpo. Ele também é, entre outras coisas, um veículo de contágio, ou seja, ele é a sua maneira uma parte do corpo social e deve também ser tratado como tal. Um afeto dessa natureza é tudo os que sustentam esse Governo e sua indiferença genocida querem que não emerja. Porque ele se realiza na igualdade real e em uma mutualidade que ainda não existe, mas que pode existir.

A maioria brasileira que ainda não tem voz saberá como rejeitar esse individualismo possessivo que é a verdadeira forma de violência. Pois o verdadeiro embate é pela construção de uma liberdade real que nunca aceitará que mais de 28.000 brasileiras e brasileiros mortos é uma fatalidade natural, como a queda das folhas no outono.

Para finalizar, não podemos mais aceitar as chantagens que nos foram impostas. Nossas ações devem ser mais efetivas a partir de agora. Redes de boicotes a empresas que sustentam essa política da morte, manifestações de rua pelo impeachment do Governo que respeitem exigências de segurança sanitária (como vimos em Israel). Pois a queda desse Governo não será apenas a queda desse governo. Será dar a maioria sua verdadeira força de recusa e abrir o caminho para que ela possa começar a criar.

Vladimir Safatle é professor titular do Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo.

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