‘Democracia em vertigem’, um filme que nunca termina
Indicação ao Oscar resgata e amplia ao mundo a dúvida sobre “golpismo” e o perigo das tentações autoritárias
Os filmes precisam ter um fim, subir os créditos. Nas ficções, a imaginação cuida de continuá-los nas nossas cabeças – Taxi driver (1976) segue rodando ad eternum, talvez agora na pele de um neurótico “empreendedor” brasileiro motorista de Uber e bartender free-lancer.
Nos documentários, a vida real ou o jornalismo se encarregam de dar sequência. Democracia em vertigem, por exemplo, não acabaria com letreiro informando que o ex-ministro Sergio Moro, o mesmo que mandou prender o Lula durante a corrida presidencial de 2018, tomou posse na condição de ministro da Justiça do governo Jair Bolsonaro. Seguiria com as memórias do subsolo reveladas pelo The Intercept Brasil em parceria com veículos como este EL PAÍS. O uso de métodos explicitamente corruptos em nome do combate à corrupção fariam do ex-juiz e dos procuradores da Lava Jato personagens ainda mais relevantes na trama.
É só um exercício de montagem da história pra gente falar duas ou três coisas sobre o filme de Petra Costa indicado ao Oscar 2020. A própria diretora revelou que, se soubesse, teria esperado pelos segredos recolhidos por Glenn Greenwald e equipe. Seria importante para termos um documento audiovisual de um capítulo sequestrado da história pela televisão brasileira, mas em nada enfraquece a obra. Ao contrário. Praticamente lança a demanda por uma parte II, a missão Vaza Jato.
Uma terceira etapa também já se sustenta como roteiro: a deterioração da democracia na era bolsonarista, com ataques à imprensa, aos conselhos ambientais, sociais, surtos de censura às artes, cultura e ciência, desmonte de fundações como a Casa de Rui Barbosa, no Rio, etc. Uma amostra consistente do cenário você encontra nesta reportagem de Naiara Galarraga Gortázar.
O Brasil é uma mina, uma Serra Pelada para documentaristas de todas as visões e tendências. Petra sabe disso e a partir de um léxico familiar destrinchou em imagens a turbulência política mais recente dos tristes trópicos. São várias camadas dramáticas na escolha parcial -não há filme imparcial desde a primeira sombra projetada na parede pelos irmãos Lumière- e o conflito caseiro entre a empreiteira do avô e a utopia esquerdista revolucionária dos pais é uma tomada afetiva capaz de justificar qualquer premiação. A construtora é a Andrade Gutierrez, de origem mineira, protagonista ou coadjuvante em escândalos de superfaturamento em governos militares ou civis de todas as cores ideológicas. Os governantes mudam, os empreiteiros estarão sempre nos palácios ou nos castelos kafkianos, como espiamos na mesma lente da diretora.
O conflito caseiro ganha outra camada histórica quando uma certa pureza da utopia dos pais é baldeada com a lama da “real politik” brasileira e o envolvimento do PT em escândalos como o do Mensalão. Acrescenta-se a este ponto a autocrítica do “cavaleiro solitário” Gilberto de Carvalho, ministro-chefe da Secretaria-Geral da Presidência nos governos petistas. Não uma autocrítica tão profunda assim, como recomendaria a patente do velho marxismo-leninismo, mas raríssima.
Duas ou três coisas que eu sei ou vi no filme dela, como diria meu Jean-Luc Godard. Democracia em vertigem reabre e universaliza a mais acirrada discussão que tivemos na taba Tupi de 2016 para cá: a queda da ex-presidente Dilma Rousseff foi golpe ou não foi golpe? Sei que muita gente não aguenta mais esse drama hamletiano e preferia ficar, ad infinitum, com a versão oficial do impeachment. É um roteiro bem mais cômodo. O poder da imagem, porém, projeta inquietações e fantasmas sobre o telão das nossas crenças.
Em sendo golpe, de que tipo o classificaríamos: inteiramente parlamentar (“tem que manter isso aí”, entra a voz do Temer sobre a mesada ao Eduardo Cunha); jurídico-parlamentar (“com Supremo com tudo”, diz em off o senador Romero Jucá) ou midiático-jurídico-parlamentar (corta para uma emissora de TV abrindo um programa de futebol direto da “manifestação família” da avenida Paulista ou de Copacabana).
Dois ou três dedinhos de prosa mineira, com direito a uma pinga de Januária... À sombra da indicação ao Oscar, até a aliança Bolsodória foi restaurada no escurinho do cinema. O PSDB do governador paulista e o staff do presidente ironizaram o documentário como obra de ficção. Quem é mestre em fake news tem autoridade moral para a crítica?
O general Augusto Heleno, chefe do Gabinete de Segurança Institucional, acrescentou terror e comédia às características do filme. Medo, mas também faz sentido: uma das cenas mais terríveis da noite da votação do processo de impeachment foi marcada pela homenagem ao torturador Carlos Alberto Brilhante Ustra –“o pavor de Dilma Rousseff”, segundo o então deputado federal e hoje presidente da República.
Flash back. O coronel Ustra, só para aterrorizar um pouco a memória, tinha entre os seus requintes o uso de ratos nas vaginas das presas políticas. O traço de comédia do documentário, caro general, está nas dedicatórias ao estilo Maguila (o boxeador) dos parlamentares durante a mesma votação. Dedico esse voto à minha esposa, ao meu papagaio, ao meu cachorro Rex etc, etc.
Democracia em vertigem é forte porque cinema. O poder da imagem fechando nas mãozinhas do então vice Temer na rampa do Planalto ao lado de Lula, Dilma e Marisa Letícia. As mãozinhas também representam uma trama de marionetes, cada dedo é um personagem da traição ou do golpe -escolha você mesmo como nomear as coisas. Uma marmota, munganga com digitais, um mamulengo dos infernos.
Xico Sá, jornalista e escritor, é autor de “Big Jato” (Companhia das Letras), entre outros livros. É comentarista do programa “Redação” (Sportv).
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