Coluna

Terrorismo estocástico pela porta dos fundos

Os mafiosos do patriarcado estão ofendidos, amedrontados e ressentidos com as transformações históricas do país

Câmera de segurança capta imagem do vigilante presenciando o ataque com coquetéis molotov na sede do Porta dos Fundos, na madrugada do dia 24 de dezembro.Reprodução

Há um nome para o tipo de terrorismo difuso que vivemos: terrorismo estocástico. A palavra vem da estatística, descreve quando a probabilidade de um evento é indeterminada. Como jogar dados: os resultados possíveis são conhecidos, porém não previsíveis a cada lance. No terrorismo, são as ameaças difusas, a insistência da perseguição sem rosto ou biografia. É assim que as primeiras pessoas perseguidas pelo rebanho fanático que levou o presidente Bolsonaro ao poder descrevem as ameaças que sofriam: foram intelectuais, acadêmicos, militantes e artistas acossados por mensagens de matança, destruição e apocalipse religioso.

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O ataque ao Porta dos Fundos é uma peça do ecossistema em que o terrorismo estocástico é um agente de disseminação do pânico. Governos autoritários animam a esperança da proteção do pai primevo pela instauração do medo como um sentimento político generalizado. O par medo-esperança não é novo na história política, e já compreendido sobre como operou nos regimes fascistas do passado. Mas a história não é uma simples repetição do vivido, por isso, importa compreender a quem interessa o terrorismo estocástico para uma ordem política em que favelas e condomínios de luxo se cruzam com os universos digitais das mídias sociais legais e clandestinas.

O terrorismo estocástico responde a um mesmo senhor moral na política bolsonarista, os valores do patriarcado da conquista, para seguir as palavras de Rita Segato. É uma ordem espoliadora colonial que não abandona suas forças misóginas, homofóbicas e racistas. Se toda violência carrega uma dimensão instrumental e outra expressiva, no terrorismo estocástico contra o Porta dos Fundos, a dimensão instrumental é evidente: o objetivo é instaurar o pânico. É, porém, a dimensão expressiva que exige ir além da investigação policial sobre sujeitos encapuzados que assumem a autoria do ato.

Um regime político que se instaura pela mentira (ou pelo “terrorismo das fofocas”, segundo o Papa Francisco) e pelo medo se estrutura por diferentes dimensões de sociabilidade. Uma delas é a que disputamos pelo Estado democrático de direito: a separação entre instituições políticas e religiões, a transparência dos atos de governo ou a luta por direitos. Outra dimensão é a que vários países da América Latina vivem como realidade paralela —a das milícias, das forças ilegais e brutais do narcotráfico e das gangues, da corrupção das elites. Uma terceira realidade, onde se esconde a milícia virtual, é a pararrealidade da clandestinidade digital, o ponto de encontro para os mafiosos da masculinidade ofendida que dali partem para ameaçar os que ousam desestabilizar os privilégios do patriarcado da branquitude.

O que querem expressar os mafiosos da masculinidade ofendida? A quem querem se comunicar? A outros homens de grupos mafiosos que se escondem na pararrealidade que alimenta o fanatismo. A passagem da pararrealidade à vida comum não se dá apenas em eventos espetaculares como a violência ao Porta dos Fundos, mas pela cotidianidade do encontro dessas pequenas máfias com a masculinidade abusiva que opera na legalidade, como os influenciadores digitais da política bolsonarista de ódio às feministas.

Esse é o pulo do gato que demanda nossa atenção. Primeiro, é preciso identificar e submeter à ordem do Estado os mafiosos que aterrorizam desde a pararrealidade. Mas é também preciso reconhecer que há encontros e interesses mútuos entre os mafiosos e o Estado de poder. Os mafiosos do patriarcado estão ofendidos, amedrontados e ressentidos com as transformações históricas do país: não é o pater embranquecido quem apenas tem voz.

Debora Diniz é brasileira, antropóloga, pesquisadora da Universidade de Brown.

Giselle Carino é argentina, cientista política, diretora da IPPF/WHR.

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