A bem-sucedida canção secundária de Nina Simone
'My Baby Just Cares For Me' é talvez a música mais famosa de Nina Simone. Mas a canção chegou por acaso ao repertório da cantora que no fundo queria ser pianista clássica: a gravou para completar um disco e os lucros que gerou foram para outros.
Da mesma forma que na música já não há repertórios, e sim um setlist tocado pelos artistas, houve um tempo em que o crowdfunding se chamava arrecadar dinheiro para uma boa causa. É o que Muriel Massinovitch, a primeira professora de piano de Nina Simone (à época Eunice Kathleen Waymon), fez entre os moradores de Tryon (Carolina do Norte) quando quis que o dom de sua virtuosa aluna não acabasse no mesmo atoleiro que o de muitos outros músicos pelo simples fato de ser negra e pobre. Na verdade, a rede de solidariedade havia começado na casa de um casal branco onde a mãe de Eunice trabalhava no final dos anos trinta, quando a menina tinha somente seis anos. Como conta a própria Simone em sua autobiografia, I Put a Spell on You, a senhora Miller foi vê-la tocar e disse a sua mãe: “Com semelhante talento, seria um pecado que não tivesse aulas de piano. Mamãe lhe disse que não podíamos pagá-las. A senhora Miller refletiu por alguns segundos e depois deu uma resposta: me pagaria as aulas durante um ano”.
Após esse primeiro ano, a senhorita Mazzy – como sua aluna a chamava – criou o Fundo Eunice Waymon para arrecadar o dinheiro necessário aos estudos secundários e de música à futura estrela. A cidade respondeu com entusiasmo ao pedido da professora, mas ao acabar o secundário a virtuosa Eunice foi recusada em seu desejado Curtis Institute of Music por puro racismo. Após uma temporada de desânimo, em 1950, a adolescente se refez e começou a procurar trabalhos que lhe permitissem continuar tendo aulas particulares. O primeiro deles a colocou no caminho da música moderna – porque ela continuava em seu caminho sinfônico –: acompanhava ao piano os alunos de uma professora de canto que os instruía à base de padrões de jazz e sucessos melódicos do momento. Foi ali que, provavelmente, Simone entrou em contato pela primeira vez com a partitura de My Baby Just Cares For Me, canção incluída no musical Whoopee!
A intérprete guardava em seu cérebro aquelas harmonias que, por outro lado, desprezava por sua simplicidade em comparação às arquitetônicas sonatas de Bach. Tinha a memória e a capacidade física muito desenvolvidas desde o longo período em que sua mãe, pastora metodista além de empregada doméstica, a levava para tocar gospel durante as “cerimônias de avivamento” (da fé) que realizava por igrejas de todo o condado.
Também naqueles primeiros anos cinquenta, uma tímida Eunice começou a tocar em locais de turistas em Atlantic City todo esse repertório reconhecível que havia aprendido. Quando terminou sua primeira noite no Midtown Bar and Grill encontrou o dono do local apoiado no balcão. Ele perguntou rudemente por que ela não havia cantado nas sete horas de recital, ao que ela respondeu: “Sou pianista”. E seu chefe fez a ameaça a que o jazz mais deve agradecer em toda a sua história: “Amanhã à noite você vai cantar. Se não o fizer, ficará sem trabalho”, foi assim que Nina precisou ouvir a si mesma cantando pela primeira vez, algo em que nunca havia reparado.
Quem reparou em seu talento foi o dono da Bethlehem Records, Sid Nathan, que lhe ofereceu seu primeiro contrato discográfico. Sem entusiasmo algum, Simone gravou em 14 horas alguns temas de jazz e gospel, e acrescentou várias canções próprias cujos arranjos escreveu quase na hora. Mas Nathan lhe pediu que acrescentasse uma canção mais animada para fechar o álbum, e Simone escolheu seu arranjo de My Baby Just Cares For Me.
O disco (Little Girl Blue, 1958) e a própria canção passaram pelas lojas e emissoras de rádio sem muita glória. Mas é verdade que aquilo a colocou no mercado discográfico e fez despontar uma carreira de intérprete alternando entre o pop e o jazz que lhe permitiu ter um nome e muito trabalho e dinheiro durante a década de sessenta e começo dos setenta. Ainda assim, quando chegaram os oitenta, Nina Simone não era mais do que uma velha glória agradável de se encontrar nos cartazes dos festivais de jazz. Até que em um belo dia de 1987 ela recebeu notícias inesperadas da Europa: My Baby Just Cares For Me fazia sucesso nas paradas após a canção servir de gancho em um comercial de televisão do Chanel Nº 5. Simone ligou ao seu representante, que comprovou, para desgosto de ambos, que a artista não tinha direito a um só centavo dos enormes royalties que a música gerava quase 30 anos depois. Então Nina Simone lembrou como acabaram as 14 horas de gravação daquele dia de 1958: “Nathan me deu um papel para que eu assinasse, o que fiz sem lê-lo. (...) Havia renunciado a praticamente tudo o que minhas gravações ali haviam gerado. E isso me custou mais dinheiro do que eu podia contar”.
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