“A sociedade foi Rubens Paiva, não os facínoras que o mataram”
A decisão da juíza que proíbe as Forças Armadas de celebrarem golpe de 1964 contrapõe texto de militares ao de Ulysses Guimarães na Constituinte. Gilmar Mendes rejeita análise do tema
A juíza federal Ivani Silva da Luz, de Brasília, proibiu em caráter liminar nesta sexta-feira as Forças Armadas de comemorarem, especialmente com uso de dinheiro público, o 55º aniversário do golpe de Estado que em 1964 instaurou a ditadura militar no Brasil. A indicação para fazer as "comemorações devidas" na data —os militares preferem o 31 de março ao 1º de abril—, partiu do presidente de ultradireita, Jair Bolsonaro, que depois tentou suavizar a ordem citando que era um dia para "rememorar".
Para Silva da Luz, o texto divulgado pelo Ministério da Defesa como "ordem do dia alusiva ao 31 de Março de 1964", já lida em alguns quartéis, "não é compatível com o processo de reconstrução democrática" promovido pela Constituição de 1988, "desobedece ao princípio da prevalência dos direitos humanos" e ignora a decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos de 2018 que condenou o Estado Brasileiro a apurar, julgar os responsáveis pela morte do jornalista Vladimir Herzog na ditadura militar.
A magistrada, que também pontua que datas comemorativas devem ser aprovadas pelo Congresso, justapõe o texto chancelado pelas Forças Armadas com o discurso do presidente da Assembleia Constituinte, Ulysses Guimarães, na promulgação da Carta em 1988. Para a juíza, o texto dos militares é uma "celebração à ruptura política deflagrada pelas Forças Armadas" ao dizer que os golpistas "agiram conforme os anseios da Nação Brasileira". Na dura sentença, Silva da Luz diz que a mensagem "desobedece ao princípio da prevalência dos direitos humanos" e contraria o compromisso com os valores democráticos "canalizado pelo discurso do presidente da Assembleia Nacional Constituinte". A sentença cita trechos da fala de Ulysses Guimarães. “A sociedade foi Rubens Paiva, não os facínoras que o mataram”, disse em 1988 emedebista em referência ao caso do ex-deputado Rubens Paiva, preso, torturado e morto pelo regime militar em 1971.
O porta-voz da Presidência, Otávio Santana do Rêgo Barros, não comentou a decisão. "O que nós tínhamos de falar ao longo da semana, já falamos. Não temos mais nada para comentar", disse nesta sexta. Segundo a Folha, o Ministério da Defesa informou não ter recebido a decisão que proíbe a ordem do dia, que ainda estava, até a publicação desta reportagem, disponível nos sites da Marinha, Exército e Aeronáutica.
A proibição legal traz ainda mais tensão para o fim de semana. Já avançada a sexta-feira, o ministro do STF (Supremo Tribunal Federal), Gilmar Mendes, se negou a dar seguimento a um mandado de segurança apresentado por parentes de vítimas da ditadura e pelo Instituto Vladimir Herzog para suspender atos em comemoração do golpe militar de 1964. Mendes não entrou no mérito da questão, afirmando que o instrumento legal não se aplicava. Ainda assim, usou sua sentença para comentar a questão e repetir elogiosamente a definição do presidente da corte, Antonio Dias Toffoli, que disse no passado: “Hoje, não me refiro nem mais a golpe nem a revolução. Me refiro a movimento de 1964." A frase foi criticada na época por também relativizar o golpe e a ditadura. "A interpretação é vesgamente enviesada, procura um ponto de equilíbrio que não existe em história e tem como resultado a absolvição histórica do golpe e dos golpistas. No limite, e este limite foi agora ultrapassado pelo Toffoli, preconizam deixar de se falar em ditadura", disse ao EL PAÍS o o historiador Daniel Aarão Reis.
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