As redes sociais destruirão a democracia ou a ressuscitarão?
Se a ferramenta for chamada a obrigar o poder a atuar sob a luz do sol já deve merecer nosso aplauso e até nosso agradecimento
Existe tamanha perplexidade com as redes sociais que sobre elas recaem as teorias mais extravagantes e contrapostas. Há quem as veja como o verdugo que acabará com a democracia tradicional tal qual a vivemos. E há quem chegue a concebê-las como o milagre que fará a democracia ressuscitar da crise de identidade em que hoje se encontra.
Quem observa esse novo fenômeno de comunicação mundial, através dos frutos que está conseguindo com a multiplicação de governos autoritários e até fascistas, acredita que as redes sociais representarão a morte da democracia tal como a conhecemos até agora.
Três episódios atuais poderiam condenar, com efeito, as redes como portadoras de governos autoritários e de extrema direita: Trump nos EUA, coração da maior democracia do mundo; Bolsonaro no Brasil, o coração econômico da América Latina; e agora o despertar na Andaluzia (Espanha) do Vox, um partido ultraconservador, até ontem insignificante, cujo repentino triunfo contribuiu para interromper quase 40 anos de domínio socialista naquela emblemática região, pátria de Felipe González.
Nesses três exemplos emblemáticos, as redes sociais tiveram mais força no triunfo eleitoral que os poderosos meios de comunicação do passado, dos grandes jornais às emissoras de rádio e televisão. E isso gerou alarme.
Existe também quem prefira ver o fenômeno das redes sob um prisma menos pessimista, como um instrumento que, se hoje aparece como inimigo da democracia, poderia, no final do caminho, apresentar duas importantes finalidades.
A primeira, embora possa parecer paradoxal, seria ter se transformado num instrumento com o qual estamos descobrindo que nossa democracia tradicional, que acreditávamos imune a todas as investidas fascistas e fundamentalistas, está doente.
As redes estariam revelando que um dos fundamentos da democracia, como a participação real e direta da sociedade e dos indivíduos na gestão do poder, fracassou. Os representantes políticos haviam se entrincheirado em seus castelos murados e revestidos de privilégios que ofendem a democracia. E se esquecido da praça onde se arrisca a vida.
As redes estariam sendo o alarme de que a sociedade da comunicação global já não aceita passivamente certo modo de encarnar a democracia. Não seriam as culpadas por seu desmoronamento, e sim as reveladoras de que as novas gerações já não reconhecem os antigos valores nos quais a democracia se fundamentava. Ou os consideram prostituídos.
Uma visão menos pessimista e até esperançosa das redes, uma vez desintoxicadas de seus excessos e pecados, de sua dificuldade de administrar esse novo modo de comunicação direta e global, chega até a imaginar que elas poderiam ajudar a ressuscitar a democracia.
Uma ressurreição que comportaria não só recuperar a essência libertária da democracia e purificá-la, mas também reinventá-la.
Sempre se disse que a democracia não é o melhor dos governos, mas que até agora não havia sido encontrado nada melhor para que os povos vivessem em liberdade e justiça. Se for assim, cabe sempre abrir novos horizontes dentro dela. Cabe purificá-la das suas escórias que a converteram em alvo de rejeição de milhões de eleitores no mundo.
Feliz paradoxo, poderiam as conturbadas e hoje ainda perigosas redes sociais serem chamadas a recriar uma democracia que realmente faça jus ao seu nome e às suas origens. Que encarne os desejos de uma nova Humanidade descontente com o presente e em busca, embora às vezes por caminhos distorcidos, de uma nova terra prometida. Uma democracia mais de todos, e não só do punhado de privilegiados que se servem dela como curinga para seus caprichos e interesses pessoais.
A democracia é essencialmente irradiação da liberdade pessoal e comunitária. A liberdade de expressão sempre foi seu fulcro como antídoto contra as tentações do poder absoluto.
As redes sociais poderiam estar convocadas a colaborar nessa batalha da liberdade de expressão como contraponto a um poder cada vez mais encastelado em querer governar à custa da opinião pública.
Se as redes sociais forem chamadas a obrigar o poder a atuar sob a luz do sol, e não escondido nos subterrâneos, já deveriam merecer nosso aplauso e até nosso agradecimento.
O que precisamos é estarmos alertas para que desse novo modo de vigilância do poder por parte da sociedade não se apropriem os poderosos, colocando-a a seu serviço, contra a própria democracia.
Nada, como diziam os romanos, é pior que a corrupção do melhor. E hoje as redes são o melhor e mais democrático que já foi criado contra a solidão e a comunicação total. O quarto poder, no qual antigamente nos arrogávamos os jornalistas, hoje está nas mãos de todos. Terrível e formidável ao mesmo tempo. Impensável até ontem. O novo pode nos iluminar ou ofuscar. A luz é o mais próximo da escuridão.
Tu suscripción se está usando en otro dispositivo
¿Quieres añadir otro usuario a tu suscripción?
Si continúas leyendo en este dispositivo, no se podrá leer en el otro.
FlechaTu suscripción se está usando en otro dispositivo y solo puedes acceder a EL PAÍS desde un dispositivo a la vez.
Si quieres compartir tu cuenta, cambia tu suscripción a la modalidad Premium, así podrás añadir otro usuario. Cada uno accederá con su propia cuenta de email, lo que os permitirá personalizar vuestra experiencia en EL PAÍS.
En el caso de no saber quién está usando tu cuenta, te recomendamos cambiar tu contraseña aquí.
Si decides continuar compartiendo tu cuenta, este mensaje se mostrará en tu dispositivo y en el de la otra persona que está usando tu cuenta de forma indefinida, afectando a tu experiencia de lectura. Puedes consultar aquí los términos y condiciones de la suscripción digital.