Como chamar Bolsonaro por seu nome
A linguagem não é inócua, mas neutralizá-la, privá-la de sua suposta carga viral, pode acabar sendo contraproducente
Com o propósito de evitar o uso de anglicismos, a Fundação do Espanhol Urgente (Fundéu) propõe traduzir o conceito alt-right — a doutrina ultrarreacionária que levou Donald Trump à Casa Branca – como nacional-populismo. Pouca margem parece haver para traduzir o termo. Direita alternativa, a tradução literal, conota o viés possibilista, mas é insuficiente; ultradireita, ou direita radical, deixa de fora quem, a partir de aparentes antípodas ideológicos, acaricia postulados da corrente promovida por Steve Bannon: o rechaço à imigração e ao multiculturalismo, um irado sentimento anti-establishment, o “nós primeiro”.
Há nesse saco exemplos para todos os gostos: do kirchnerismo e outros caudilhismos americanos ao neoimperialismo de Putin e Erdogan; o autoritarismo de Orbán e a defesa do protecionismo por Trump e Le Pen. Fato é que a alt-right serve sobretudo de lema para a variada ultradireita europeia, mas limitá-la a essa órbita eliminaria nuances à tradução e ao conceito.
Talvez a solução, uma vez na vida, tenha vindo dos políticos. Com acuidade semântica, o comissário (ministro) europeu Pierre Moscovici escolheu sem rodeios o termo fascista para denominar o eurodeputado da italiana Liga que pisoteou seus papéis no Parlamento continental. Também Madeleine Albright, ex-secretária de Estado norte-americana, defende em seu último livro esse adjetivo como qualificativo certeiro para Le Pen, Putin e Trump. Ou para o presidente eleito do Brasil, Jair Bolsonaro.
A linguagem não é inócua, mas neutralizá-la, privá-la de sua suposta carga viral, pode acabar sendo contraproducente: a perversão da linguagem anestesia a percepção da realidade (e das ameaças). Isto não ocorre só com o catálogo político, mas também com assuntos cotidianos. Ao falar de “divórcio expresso” na Índia, equipara-se a um trato mais ou menos igualitário (um divórcio) o que não é senão um repúdio, uma figura existente em códigos de família de países muçulmanos. Idem com as “devoluções expressas” de imigrantes, a propósito das ilegais devoluções a quente. A expressão “danos colaterais”, um eufemismo abominável que passou a permear a fala cotidiana, denota a colheita de morte de bombas supostamente inteligentes — outro exemplo — ao arrebentar um ônibus escolar no Iêmen. E assim ad nauseam.
Linguagem e poder formam uma simbiose inextricável, cujas artimanhas conduzem a essa guerra de guerrilhas semântica que é a desinformação, bem armada de “fatos alternativos” e notícias falsas. Por isso, é preciso ressignificar a linguagem, para evitar que ela edulcore o veneno de propostas como as da alt-right. Não contribuiu para isso que [os partidos conservadores espanhóis] PP e Ciudadanos relutem em qualificar de extrema-direita um partido como o Vox. Porque se trata de expor a face, e os fasces, desta direita briguenta e vociferante que tantas eleições está colhendo na Europa e América.
Tu suscripción se está usando en otro dispositivo
¿Quieres añadir otro usuario a tu suscripción?
Si continúas leyendo en este dispositivo, no se podrá leer en el otro.
FlechaTu suscripción se está usando en otro dispositivo y solo puedes acceder a EL PAÍS desde un dispositivo a la vez.
Si quieres compartir tu cuenta, cambia tu suscripción a la modalidad Premium, así podrás añadir otro usuario. Cada uno accederá con su propia cuenta de email, lo que os permitirá personalizar vuestra experiencia en EL PAÍS.
En el caso de no saber quién está usando tu cuenta, te recomendamos cambiar tu contraseña aquí.
Si decides continuar compartiendo tu cuenta, este mensaje se mostrará en tu dispositivo y en el de la otra persona que está usando tu cuenta de forma indefinida, afectando a tu experiencia de lectura. Puedes consultar aquí los términos y condiciones de la suscripción digital.